I – Quando a Feira era “do pau” e a rádio era “Emissora” – Alagoinhas 1969-1981 – José Jorge Andrade Damasceno

Tendo completado cento e setenta anos de emancipação político-administrativa, em seu marchar desde o estabelecimento do núcleo populacional nas proximidades da estação ferroviária aberta ao tráfego em 1863, trazendo consigo a feira que já funcionava na antiga povoação, até a consolidação das bases urbanas do município no atual “comércio”, Alagoinhas construiu marcas indeléveis no imaginário dos
seus moradores, que teimam em se manter vivas a despeito dos anos e das mudanças na configuração espacial da cidade. Memorialistas, cronistas e poetas que insistiram em descrever e cantar a cidade “terra da laranja”, trouxeram ao público com leveza e elegância, muitos elementos espaciais que ficaram entranhados no seu rememorar, que, em grande parte dos casos, não reste mais do que alguns vestígios em forma de fotografias e imagens descritas por gente da estirpe de Américo Barreira (1868-1910), Salomão Barros (1899-1986), Naylor Bastos (), Joanita Cunha(1920-), Olívio Paranhos, Roque Costa, Maria Feijó (1918-2001), dentre outros alagoinhenses que se deram ao trabalho de divagar sobre os “lugares de memória” que tanto os impressionara.

Alguns destes lugares de memória ainda estão preservados, em alguma medida, a despeito das precariedades de suas instalações, como é, por exemplo, o caso da imponente estação São Francisco, em cujas dependências se encontra o rico acervo da Fundação Iraci Gama.
Por ali, passaram muitos homens e mulheres, ao longo de mais de cem anos, nos seus diversos afazeres e labores: eram maquinistas, fiscais, bilheteiros, passageiros demandando os vários destinos atendidos pelas ferrovias que tinham o seu terminal de passageiros e/ou cargas naquela gare; também vendedores de lanches e guloseimas, repastos e refrescos; carregadores de bagagens, e tantos outros transeuntes que circularam naquele espaço de sociabilidade dos tempos auspiciosos daquela Alagoinhas tornada entreposto ferroviário.

Daquela estação também partia e chegava uma indefinida gama de mercadorias, parte delas destinada à comercialização na feira livre da cidade. Quando aos nove anos incompletos este escrevedor iniciara os seus lidares com as atividades escolares, também passara a tomar contato com a já centenária “Feira do Pau”, localizada ao longo da Rua Alcindo de Camargo, estendendo-se até o Largo do Tamarineiro; nas sextas e nos sábados, ela ocupava todo o muro do grupo escolar Brasilino Viegas, espraiando-se por toda a rua Francisco Batista, até chegar na frente do prédio do Paço Municipal.

Por ali, precisava passar todos os dias, demandando o Brasilino Viegas, transitando por um longo passeio que ficava à direita daquele que ia no sentido do prédio onde eram realizados os cultos da então primeira Igreja Batista de Alagoinhas. Ao longo do trajeto, logo no início do aludido passeio, ficava o espaço onde eram comercializadas as aves – galinhas, galos, perus – que faziam a sua natural algazarra, alegrando por demais os sentidos do menino que se encaminhava para a escola. Quando era sexta feira, o trajeto ficava um pouco mais difícil, visto ser grande o contingente de pessoas a circular, bem como o era maior o número dos que comercializavam seus produtos, naquele espaço exíguo, onde também estavam instalados os prédios de açougues, armazéns onde se vendia querosene e cachaça, odores que chegavam ao aguçado olfato daquele tenro estudante, cuja memória não se apagou, a despeito dos muitos anos já decorridos.

Nas sextas feiras, o retorno para casa era por dentro da feira, experimentando farinha, bafando amendoins, camarões secos para ser comido com os muitos punhados de farinha, surrupiados à guisa de “provar”.

Entretanto, aquela movimentada feira escondia entre as suas barracas de madeira, seus caçuás de farinha, sacas de feijão e capoeiras de aves diversas, um de seus braços, que se estendia na direção à rua Teresópolis, como se fosse pegar o trem que se dirigia ao “Timbó”, como se quisesse alcançar a distante Propriá.

Esta parte da feira era a afamada “Feira do Pau”, onde as noites de sexta para sábado e o final dos trabalhos de mercadejar da tarde do último dia de feira, era brindado com folguedos, bebidas e alegríssimas danças que varavam a noite, aguardando a chegada do domingo. Os recursos auferidos na realização da comercialização de frutas as mais diversas, aves de todo o tipo, verduras, carnes, queijos, farinhas, vários tipos de feijão, além de produtos de época, como milhos, laranjas e amendoins, abundantes por ocasião dos festejos juninos, em grande parte, era dissolvido nas biroscas de venda de cachaça e nos espaços onde as atividades sexuais eram desenvolvidas até o raiar do domingo.

Ali, muitas mágoas de amor foram afogadas em copos e copos de aguardente; em braços de amantes que muitas vezes sequer conheciam os amados; nos leitos de há muito conhecidos pelos que a eles recorriam para abandonar-se ao “amor” alugado por alguns “tostões”, que por sua vez, aqueles “tostões” aliviavam a fome daquelas que alugavam os tais “amores” e de sua quase sempre numerosa prole, fecundada, parida e criada ali mesmo, desenvolvendo uma população quase invisível, sem que porém assim o fosse.

No final dos oitenta, aquela centenária feira acabara por ser desativada e levada para um lugar “salubre”, onde a “higiene” seria o ponto alto do lugar onde os alimentos seriam comercializados dali por diante.

Quase concomitantemente à “morte” da Feira do Pau, Alagoinhas assistia impassível a morte da rádio “emissora”, uma marca da cidade que não conseguiu se manter viva, a não ser na memória dos seus ouvintes mais longevos.

Locutores como Augusto Saraiva, Lourival de Andrade, Raimundo Rollemberg, Jorge Oliveira, Aluísio Santana, Célio Machado, Belmiro Deusdete ocuparam a imaginação dos seus ouvintes e fizeram a história da rádio “emissora de Alagoinhas”, mas não conseguiram construir um legado que fosse duradouro, talvez, sequer um acervo, que possa um dia ser  visitado por quem a conheceu e por aqueles que ao menos, viessem a conhecer a rádio que falou para a cidade por mais de cinquenta anos.

Assim, este escrevedor é do tempo que a feira era “do pau” e a rádio era “emissora”.

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

Menu de Topo