XIII. – Histórias e memórias de reveses de um professor CEGO em princípio de carreira E à PROCURA DE EMPREGO – ALGUMAS REFLEXÕES IRREVERENTES – José Jorge Andrade Damasceno

Há uma pressão social exercida pela mídia e pelas redes sociais, no sentido de fazer com que os indivíduos busquem o êxito em tudo que diz ou faz. A “Era das realizações”, imposta sobretudo aos jovens, assevera que um revés, ou um conjunto deles, é um sinal indicativo de incompetência e de fracasso, não só enquanto pessoa, como também como profissional.

É assim que, dificilmente alguém relataria, publicaria, ou mesmo daria a conhecer os infortúnios que sofrera no transcurso da vida, mormente, àquelas pessoas que não o conhecera antes do momento vivido.

Neste arrazoado, se buscará trazer a partir da memória selecionada por este escrevedor, alguns dentre muitos que ele vivenciara ao longo de sua vida. Os leitores que já frequenta este espaço, já conhece alguns deles, relatados em outros escritos: as mortes prematuras de seus irmãos; a morte de sua mãe, bem como algumas facetas de seu caminhar e do farfalhar de sua genitora, no labor para lhe prover o pão, o abrigo e o alimento.

Ao concluir a Licenciatura em História pela Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, no ano da Graça de 1991, este escrevente precisava partir para buscar um espaço no mercado, na condição de professor há pouco habilitado para o ensino de História. Assim, saíra a procura de escolas onde pudesse exercer a tarefa docente, em todas recebendo recusas e escusas. Aqui vão três exemplos.

Certo dia de setembro, chegou a informação de que uma escola precisava de um professor de História, que pudesse atuar no turno da noite, a fim de cumprir o calendário. Visto que o horário não mais poderia ser refeito, o candidato já deveria ter concluído o curso e, por isto mesmo, dispusesse de tempo livre naquele turno. Antes de se apresentar como postulante à dita vaga, este escrevedor asseverou aos seus colegas que, pelo fato de ser cego, a escola não o contrataria. Diante da “incredulidade” dos colegas, se dispôs e se dirigiu até o espaço de “educação” e “ensino”.

Saliente-se de passagem, que o dito candidato fizer contato telefônico com a direção do estabelecimento, parta se certificar que a vaga ainda não houvera sido ocupada. Em resposta A tal pedido de  confirmação, o diretor que atendera o telefone, respondera que a necessidade de professor ainda não houvera sido atendida.

Não sem surpresa, ao chegar e se apresentar como postulante à vaga de trabalho anunciada, teve como resposta uma negativa e um comboio de caminhões de desculpas e escusas, tão vagas quanto inverossímeis.

Em um outro estabelecimento de ensino de prestígio na cidade, teve-se o cuidado de não se apresentar diretamente; fez chegar o seu curriculum à direção da escola, por meio de um amigo em comum. Nada de novo: as mesmas escusas; o mesmo palavrório inútil, insosso, insípido e inodoro: “inteligente”, “competente”, mas, incapaz de conduzir uma sala de aulas, cujos adolescentes podem sair e deixá-lo falando só, sem que ele sequer perceba. “Isto nos acarretaria um custo adicional, no sentido de contratar um outro funcionário, que viesse a desempenhar o controle da classe”.

O terceiro e último exemplo que aqui se poderia trazer como ilustrativo da dificuldade de um professor cego encontrar espaço no mercado do ensino privado, pode ser relatado em dois casos vividos foram da cidade de residência deste garatujador.

Em 1991/1992, a imprensa soteropolitana declarara uma “guerra” às escolas privadas da capital, pegando o mote dos altos preços das mensalidades cobrados, considerados abusivos, por uma pretensa classe média, que se via afogada nos custos para colocar e manter os seus filhos nos prestigiados colégios de Salvador. Em meio àquela dita “guerra”, como uma possível solução para ela, surge uma cooperativa educacional, que se propunha a prestar serviços educativos, com preços justos e acessíveis. Para tanto, precisaria contratar docentes.

Ao chegar para postular uma daquelas vagas, na condição de professor de História, logo fora inquirido pela funcionária que organizava a fila, se estava ali para “matricular os filhos”. Ao ouvir que estava ali para postular uma vaga de professor, ouviu a resposta incrédula, quase desdenhosa: “a fila é aquela ali”, apontando para que o cego insolente, se dirigisse ao balcão onde se estava procedendo o cadastramento.

Tendo recebido a ficha, saiu; preencheu; voltou e entregou. Até hoje, no momento mesmo que se escreve estas linhas, espera-se a resposta, quanto à contratação.

Caso semelhante se deum, quando postulou uma vaga em uma famosa fundação educacional da região. Daquela vez, também fez uso de terceiros, que levaria o currículo do postulante até o setor de recrutamento. Inadvertidamente, ou talvez não, a pessoa colocou no envelope em que se encontrava a documentação “deficiente visual”. Igualmente, até hoje se espera a resposta, acerca da contratação.

Portanto, ao buscar inserir-se como professor na rede privada de ensino, a cegueira foi o fator preponderante para a frustração daquele pleito.

A “Santa Inquisição” moderna – grande parte lastreada em formato digital -,  pautada pelas redes que impõem o “modus” como as pessoas devem viver, pensar, agir, reagir e se comportar, condena indiscriminada e diariamente, todos quantos não possam ou não se queiram enquadrar aos dogmas e aos ditames construídos e transmitidos por meio de uma grande capilaridade de fios que formam o tecido tecnológico que envolve a chamada “sociedade global”. O conjunto de tais dogmas e normas que moldam o “ser social” forjado nos últimos vinte ou trinta anos, condiciona as gerações nascidas naquilo que se poderia denominar de “Era tecnológica”, na medida em que elas se sentem obrigadas a se encaixar nos “quadradinhos” a elas destinados, sem o que, passam a ser consideradas “deslocadas”.

A referida “Santa Inquisição” moderna, pautada pelas redes sociais, que impõem o “modus” como as pessoas devem viver, pensar, agir, reagir e se comportar mediante “prescrições” de regras morais, estabelecendo severo patrulhamento individual e;/ou coletivo e, que  condena indiscriminada e diariamente, todos quantos não possam ou não se queiram enquadrar aos dogmas e aos ditames construídos e transmitidos por meio de uma grande capilaridade de fios que formam o tecido tecnológico que envolve a chamada “sociedade global”. O conjunto de tais dogmas e normas que moldam o “ser social” forjado nos últimos vinte ou trinta anos, condiciona as gerações nascidas naquilo que se poderia denominar de “Era tecnológica”, na medida em que elas se sentem obrigadas a se encaixar nos “quadradinhos” a elas destinados, sem o que, passam a ser consideradas “deslocadas”. Talvez se possa encontrar ali, explicações para se ter um número tão grande de jovens emocionalmente doentes – fobias, depressões e outros distúrbios psicossociais -, lotando as agendas de consultórios psiquiátricos e, aumentando sensivelmente o número de pessoas que precisam de atendimento psicológico e, que são submetidas a prescrição/administração de remédios cada vez mais fortes.

Entre os tais “quadradinhos” a que estas gerações precisam se encaixar, está aquele em que não é permitido fracassar, tanto no que diz respeito ao aspecto profissional, quanto no que tange aos processos relacionados à obtenção de “prosperidade” econômica e social, ascensão política e cultural. Em suma: é proibido não vencer, em tudo que fizer ou lhe for cobrado fazer. Tanto pior, se a pessoa for considerada “bonita”, “inteligente”, “competente”, “apta”. Evidentemente, tais considerações são feitas a partir de uma avaliação tão superficial quanto subjetiva, visto que, grande parte das vezes, aquela pessoa sequer foi testada, para que se pudesse chegar a tais conclusões.

É assim que, neste ponto do arrazoado ora diante dos leitores, serão apresentadas mais algumas memórias de reveses sofridos por este escrevedor na sua caminhada rumo à sua inserção no mundo do trabalho docente. Tendo percebido que as portas estavam mais do que fechadas no setor privado, passou a considerar a possibilidade de iniciar o processo de preparação para o ingresso no ensino público, mediante a realização de concursos, por meio dos quais ele acreditava que algumas barreiras seriam quebradas, em tese, graças à “impessoalidade” daquele tipo de avaliação.

Foi assim que se dispôs a encarar o concurso para professor na rede estadual  de ensino, realizado em 1992. Depois de ter cumprido todas as exigências burocráticas impostas ao candidato, para que ele pudesse ter o direito ao recebimento do material avaliativo em Braille, tal não foi a sua surpresa, decepção e frustração, quando ao chegar no local da realização das provas, fora informado que para lá não enviado qualquer material especial para a consecução do certame.

Como é praxe neste País e neste Estado, procurou-se “dourar a pílula”, inventando uma solução: quem fora credenciado para fiscalizar o exame, acabara convocada para realizar a leitura do material para o candidato. Nem precisa dizer que a “emenda saiu pior do que o soneto”. Apesar da boa vontade da dita leitora e, a despeito de ser aa dita, professora: era analfabeta, no que tange à leitura. Pontuação, entonação, ritmo de leitura: zero, zero, zero.

Moral: reprovado. Este escrevente precisou lidar com o fato consumado de uma avaliação não feita, malfeita, fazendo com que ele tivesse de assistir ao acesso de colegas ao magistério público estadual, tidos e havidos como “fracos” e, ele, tido e havido como “forte”, estava fora.

Procurando virar aquela página, passou a buscar fazer uma revisão geral daquilo que estudara na graduação, visando submeter-se a algum concurso para a FFPA. Todo o ano de 1993 fora empregado nesta tarefa. Leituras sistemáticas, metódicas e disciplinadas foram desenvolvidas durante todo aquele período, mediante a contratação de ledoras – estas sim, competentes e escolhidas criteriosamente pelo interessado.

Para fazer face aos custos de tal empreitada, contou-se com a colaboração de um bom número de colegas; teve a franquia da biblioteca particular de um outro; obteve uma subvenção em dinheiro feita por um grupo de alemães que visitaram o Vale da Nova Esperança e, simpatizaram com a “causa” daquele estudante. Tal subvenção foi sine qua non, no processo de aquisição de obras necessárias para reforçar o trabalho de preparação para o tal concurso, que aliás, nem se cogitava realizar.

Entre os anos de 1994 e 1995, deu-se uma série de reveses nas pretensões daquele estudante, pois conseguira perder concursos, inclusive, para ele mesmo – na Uefs, fora candidato único; fizera excelente prova escrita; tropeçara fragorosamente na aula pública.

Cabe aqui salientar, de passagem, que para este garatujador, o ingresso no mestrado, nem de longe era alguma coisa plausível para a sua “realidade” intelectual. Ele dissera a alguém, recentemente, que terminar a graduação e conseguir um lugar para ensinar, já seria para ele um grande feito, uma grande conquista. Mas, quase que inadvertidamente, praticamente sem qualquer noção de construção de projeto de pesquisa, arriscou uma seleção na UFBA, no final de 1994. Ali, ele perdera exatamente onde era mais frágil no seu processo de formação: na prova teórica; seu futuro orientador acertara em cheio quando lhe dissera:

– Você não leu a bibliografia.

Ali, certamente, Bira falava do alto da sua experiência docente e dos seus largos anos como orientador de inúmeros mestres que tiveram a felicidade de passar pelas suas habilidosas mãos. Na seleção seguinte, para ingresso em 1996, este escrevedor teve não só a felicidade de ingressar no programa de pós-graduação em História da Ufba, como a de tornar-se orientando do professor  Ubiratan Araújo Castro – In memoriam -, sendo mais um dentre aqueles que ele levara à condição de mestre em História.

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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