O perdão para os lobos – Carlos Heitor Cony
Virou moda pedir perdão por erros e crimes históricos. Sendo a instituição mais antiga da história ocidental, a Igreja Romana, justamente porque atravessou 20 séculos contraditórios, parece ter a consciência mais pesada neste departamento. Daí que os últimos papas pediram desculpas por crimes que não cometeram, dentro do discutível princípio da culpa coletiva e hereditária.
Quando o lobo, na fábula de Esopo (da qual La Fontaine fez famosa tradução em francês), quis comer o cordeiro, deu como argumento o fato de o cordeiro estar sujando a água que ele bebia. O cordeiro achou impossível, o lobo estava lá em cima, na nascente do rio, ele, cordeiro, estava bem embaixo. Se alguém sujava a água, era o lobo. Vencido pela lógica, o lobo apelou para a falta hereditária: “Seu pai, no passado, sujou a minha água”. E devorou o cordeiro.
Cada geração, não de lobos, mas de homens, sempre se julgou o estágio mais avançado da civilização e do progresso. Daí que julga o passado de acordo com seus valores, que serão tão transitórios quanto aqueles que condena.
No caso da Igreja Romana, ela sentiu na própria carne, na voz ativa e na passiva, essa dramática contingência do tempo. Foi perseguida, seus fiéis foram atirados aos leões, degolados e incinerados. Mais tarde, em outro contexto, alguns setores da mesma igreja agiram de forma parecida, sempre em nome da fé e da moral de um cristianismo então deturpado pelo poder. O pêndulo da história funcionou durante a Revolução Francesa. Em Lyon, quando foi promovida a missa negra em homenagem a Chalier, as igrejas foram saqueadas e profanadas. Uma procissão foi presidida por um burro com uma mitra episcopal amarrada nas orelhas.
No rabo do animal penduraram um crucifixo e a Bíblia. Uma prostituta nua esfregava hóstias consagradas no seu corpo. Quando o cortejo chegou à catedral, obrigaram um sacerdote a consagrar o vinho e com ele saciaram a sede do animal.
Na Guerra Civil espanhola, com atrocidades de ambos os lados, era comum os republicanos se esfregarem nas imagens da Virgem até atingir o orgasmo.
A estupidez, o erro e o crime nem sempre foram exclusividade de um grupo. Em linhas gerais cada época teve seus critérios de bom e de mau. O mais forte impôs seus valores ao mais fraco, muitas vezes, com a intuição de salvá-lo espiritualmente ou ajudá-lo materialmente por meio do progresso.
No Brasil, o colonizador trouxe o vírus e a vacina. Até mesmo Anchieta e Nóbrega são eventualmente acusados de lavagem cerebral praticada contra nossos índios. Por tudo isso, acho que o recente modismo de pedir perdão abstratamente, além de inútil, ou é oportunista ou hipócrita.
O cristianismo, que agora começa a ser acusado de ser o vilão da história, estabelece que o perdão só é válido quando se promove a reparação do agravo, do crime ou do pecado.
No caso dos índios, massacrados pela cruz, todos nós que descendemos de portugueses e outros europeus, deveríamos tomar as caravelas de volta, e deixar os índios em paz, sem nossa mazelas, nossas doenças, nossos deuses e, sobretudo, nossas cobiças.
O pedido de perdão para numerosos crimes tem a vantagem de admitir uma culpa coletiva ou individual. No entanto, a mecânica do perdão exige a reparação. Um dos crimes mais violentos e hediondos da história foi praticado pelo nazismo durante os anos 30 e 40 do século passado.
No caso brasileiro, durante o regime militar instalado após o golpe de 1964, apesar de ninguém até hoje ter pedido perdão, tem havido algumas reparações, há uma Comissão de Verdade que procura honesta, mas quase inutilmente, pesquisar e punir os culpados.
Contudo, a demora e falta de unanimidade da comissão em muitos episódios, vem retardando não apenas a própria verdade, mas a reparação que o Estado brasileiro deve a milhares de brasileiros.
Carlos Heitor Cony é membro da Academia Brasileira de Letras desde 2000. Sua carreira no jornalismo começou em 1952 no “Jornal do Brasil”. É autor de
Fonte: Folha de São Paulo