O partido da aventura – Contardo Calligaris
Nos anos 1970, na Itália, “il partito dell’avventura” era o golpismo que queria desestabilizar a democracia. De que forma? Insuflando os peitos da classe média com inquietudes e medos abstratos. Uma indignação generalizada (sem alvos muito específicos e circunscritos) e a sensação de insegurança (produzida pelo terror) levariam o povo a recusar o sistema no seu conjunto: a rua exigiria a renúncia do governo, o fechamento do Parlamento e o fim de partidos e sindicatos.
Se esses pedidos se impusessem, temíamos que a porta se abrisse para “aventuras” políticas imprevisíveis e (argumentávamos, baseando-nos na história recente) totalitárias: nostalgias fascistas ou sonhos stalinistas.
No retrospecto, estranho a facilidade com a qual parecíamos menosprezar a perspectiva da “aventura”. Certo, as indignações generalizadas geram um futuro incerto, que ninguém sabe no que dará e que talvez dê em algo perigoso. Mas é curioso que a aventura, com sua promessa de mudanças radicais, não nos seduzisse nem um pouco.
Seja como for, estamos, hoje, num momento bom para o partido da aventura. Imagine uma pesquisa nacional que colocasse, em qualquer ordem, por exemplo, as perguntas que seguem.
Primeiro, sobre o Legislativo. Você quer que os nossos representantes parem de usar os aviões da FAB como táxi aéreo? Quer que eles possam ser eleitos só por um mandato? Quer que eles tenham um regime de INSS igual ao de todo mundo? Quer que eles sejam obrigados a recorrer exclusivamente aos serviços públicos de educação e saúde (pela qualidade dos quais, afinal, eles são responsáveis)? Você quer que eles não possam decidir os aumentos de seus próprios salários e mordomias? Enfim, você aceitaria que o Parlamento fosse fechado, e que novas eleições fossem convocadas, em que nenhum representante atual pudesse ser candidato?
Logo, o Executivo. Você acha que os ministérios existem como objetos de barganha política mais do que por necessidade de governo? Quer que o governo corte pela metade seus 39 ministérios? Você gostaria que o governo renunciasse e alguém de reputação ilibada, sem disposição para compromissos e negociatas, tomasse as rédeas do poder?
Não inventei nenhuma dessas perguntas. Cada uma delas está (com muitas outras) em vários e-mails que recebi nas últimas semanas. Talvez uma pesquisa desse tipo seja por si só uma “aventura” perigosa: se a resposta majoritária fosse positiva, a desmoralização da classe política inteira seria brutal.
Não tenho nenhuma simpatia pela ideia de uma figura salvadora providencial –Collor foi eleito com essa imagem, e olhe no que deu.
Por outro lado, desconfio de qualquer ordem estabelecida que tente se manter e se legitimar chantageando-nos com o espantalho de um futuro incerto: aceite a gente e as coisas assim como estão ou prepare-se para o risco da “aventura”, ou seja, “depois de nós, o dilúvio”. Dizem que sem partidos e sem Parlamento não há democracia; será? Apenas 240 anos atrás, quando a revolução americana inventou a república moderna, o mundo inteiro dizia que sem rei não haveria governo possível.
Numa entrevista publicada na Folha de segunda (8), um sociólogo italiano, Paolo Gerbaudo, citando Gramsci, falou dos “sintomas mórbidos” que aparecem no “interregnum”, “quando um sistema de poder está em colapso, mas seu sucessor ainda não se formou”. São “fenômenos estranhos, criaturas monstruosas e difíceis de serem decifradas. Hoje, as criaturas estranhas são esses movimentos populares”. Um exemplo dessas criaturas? Depois da Primeira Guerra Mundial, as massas italianas e alemãs que se lançaram na “aventura” do fascismo, do nazismo e da Segunda Guerra.
Note-se que nem todos os sintomas mórbidos levam a um desfecho sinistro. Ao longo da história, houve “aventuras” que acabaram bem. Mas entendo o olhar atônito do governo e do Parlamento, pois a questão é saber para quem a aventura em curso acabará bem.
Pode ser que, aos poucos, as manifestações populares se acalmem. Mas talvez algo irreversível tenha acontecido: uma desconfiança, que existia há tempos (se não desde a origem do país), agora se tornou exasperação. E a exasperação é quase sempre um prelúdio. Ao quê? Seria sábio ter medo?
Uma coisa é certa: a responsabilidade pela eventual “aventura” de hoje não é das massas exasperadas, é de quem as encurralou até a exasperação.
Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de “Ilustrada”.
Fonte: Folha de São Paulo