Fatia de 100 milhões de brasileiros, classe C impulsiona voto à direita

Um contingente estimado em 100 milhões de pessoas, que têm perfil diverso e difícil de ser capturado por análises, se tornou um dos mais expressivos segmentos eleitorais do País, cujo comportamento pode ser fator decisivo em disputas polarizadas como a corrida presidencial deste ano. Para estudiosos do tema, é nessa fatia populacional – chamada de classe C – que se concentra em grande parte a explicação para a formação de uma onda à direita na votação em primeiro turno das eleições. Além dos 51 milhões de votos alcançados por Jair Bolsonaro (PL), viu-se o triunfo de candidatos associados ao presidente nas eleições legislativas.

Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2020, do IBGE, compilados pela consultoria Plano CDE para o Estadão, a classe C hoje compreende famílias com renda mensal entre R$ 500 e R$ 2 mil por pessoa, podendo chegar a R$ 8 mil no total. Essa parcela representa 55% da população brasileira, mas está mais concentrada nas regiões onde candidatos bolsonaristas tiveram melhor desempenho e Bolsonaro venceu a disputa com Luiz Inácio Lula da Silva (PT): no Sudeste (59%), no Centro-Oeste (61%) e no Sul (63%). No Nordeste, onde a maioria votou em Lula, as classes D e E correspondem à maior parte, 47%, e a classe C é menor, com 45%.

Neste segmento socioeconômico, analistas identificam um forte sentimento de abandono somado à desconfiança em relação ao Estado. E ainda impactado pelas consequências de uma decadência após melhora de vida nos anos 2000. Os valores morais, com influência da religião, e a grande dificuldade em se mobilizar com pautas intangíveis são outras duas características marcantes.

”O discurso de que o Estado não funciona e é corrupto é muito aderente a esse público”, observa o antropólogo Maurício de Almeida Prado, diretor executivo da Plano CDE, empresa de pesquisa e consultoria especializada em classes populares. Ele ressalta que a insatisfação é também grande com os serviços públicos, como saúde e educação, que eventualmente a classe C se vê obrigada a utilizar.

Percepções como essas estão mais alinhadas com o discurso de Bolsonaro, que tenta a reeleição, e com a bandeira de muitos dos novos eleitos para o Congresso. Em comum, também, a defesa de que o Estado não interfira na vida das pessoas, além da retórica anticorrupção simbolizada nos casos envolvendo o PT.

De acordo com analistas, iniciativas como o aumento do auxílio emergencial às vésperas das eleições não mudaram essa relação já estabelecida entre o atual presidente e o Estado mínimo. “Mesmo que Bolsonaro não tenha conseguido fazer ações nesse sentido, o ‘não fique em casa’, o ‘Estado me atrapalha’, menos coletivo e mais individual, é uma visão que colou nele e que tem respaldo nesse grupo”, completa Prado.

Limbo

O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Lauro Gonzalez vê “um caldo de ressentimento em um grupo que está no limbo”, nem tão pobre para entrar em programas sociais, mas que também não conseguiu o sucesso que esperava mesmo com mais escolaridade que seus pais. Muitos também não são negros, o que não lhes deu benefícios como cotas raciais, que se tornaram lei em 2012. Após anos seguidos de crescimento econômico, de renda e queda de desigualdade, a classe C retrocedeu após 2014, com a recessão no País.

No foco de estudo de Gonzalez estão os “microempreendedores por necessidade” – não aqueles que promovem inovações disruptivas, mas os que abrem um pequeno negócio para se sustentarem. “É um contingente grande de pessoas que estudaram, cursaram faculdade, tiveram mais acesso, mas se viram depois em um mercado de trabalho caracterizado pela recessão, precarização, com crescimento de plataformas na internet, uberização. Elas acabam atribuindo ao Estado a responsabilidade pelo que está acontecendo”, destaca o economista.

”A desconfiança em relação ao Congresso, aos partidos e até ao Judiciário é profunda”, diz o professor e coordenador do grupo de trabalho sobre a qualidade da democracia da Universidade de São Paulo (USP), José Álvaro Moisés.

Ele salienta que esse sentimento vem desde as manifestações de 2013, se acentua em 2018 e perdura até 2022, causado por uma não resposta da hegemonia política baseada no rivalidade PT-PSDB. “Na medida que aquela crise se acentua com os casos de corrupção, isso se ampliou. Abriu-se um vácuo que foi ocupado pela direita num contexto de mudanças no capitalismo, ampliando serviços, volatilizando os trabalhos, sem estrutura de classe.”

O próprio PT, por meio de seu braço teórico, a Fundação Perseu Abramo, percebeu um contexto equivalente antes mesmo da eleição de Bolsonaro. Uma pesquisa qualitativa da fundação petista com ex-eleitores da sigla na periferia de São Paulo concluiu que o Estado não agia como indutor de qualidade de vida e oportunidades, mas como “inimigo” responsável por se apropriar do dinheiro dos impostos e fornecer serviços de baixa qualidade.

Neste sentido, a única forma de ascensão social é o mérito pessoal. Os eleitores que na época abandonaram o PT enxergavam tanto Lula quanto Silvio Santos e Doria como principais exemplos de homens que “saíram de baixo” e venceram na vida.

Para Edinho Silva, um dos coordenadores de comunicação da campanha de Lula, a classe C é “muito heterogênea e difícil de ser caracterizada”. O partido, segundo ele, tem se dirigido a esse público quando trata do endividamento das famílias e do apoio aos empreendedores. “Acreditamos que é possível mostrar para os setores médios que as medidas que impactam esse setor, como redução do combustível, são meramente eleitoreiras.”

Intangível

Outro elemento que as análises mostram sobre este grupo é uma dificuldade em entender e se mobilizar pelo que parece intangível. Em suas pesquisas, Prado percebe posições fortes, por exemplo, contra o feminismo. “Eles são contra demitir uma mulher por estar grávida, mas não associam isso ao feminismo. Há uma visão geral da coisa, mas quando vai no detalhe, no tangível, se mostram a favor”, explica. As campanhas têm justamente explorado, sem explicações detalhadas – o que favorece essa confusão – temas como aborto, drogas e gênero.

No aspecto criminal, diferentemente do que ocorre com o PT, analistas avaliam que há baixa compreensão sobre suspeitas de corrupção no governo Bolsonaro, como a influência dos pastores no Ministério da Educação (MEC), revelada pelo Estadão, ou a investigação sobre compra de vacinas para covid-19, denunciada pela CPI no Senado. “Petista preso é algo mais concreto. Roubo, cadeia é mais simples de entender”, diz Prado.

”Ainda somos em grande medida um país pobre, desigual, vinculado à necessidade de bens materiais, mesmo entre a elite. A agenda dos direitos, das identidades, ainda fica em segundo plano”, completa o professor de ciência política da Universidade de Brasília (UNB), Lúcio Rennó, que estuda o bolsonarismo e é especialista em opinião pública.

Segundo ele, Bolsonaro vem recuperando eleitores que havia perdido desde 2018, e a dificuldade maior se dá entre aqueles cuja família foi diretamente impactada por uma morte na pandemia. Na classe C, é nesse grupo que se instala a maior rejeição ao presidente, além das mulheres. “Mas muitos estão pesando mais os ganhos recentes econômicos do que tudo que aconteceu durante a pandemia”.

Identificação de Classe C com religião faz PT rever campanha

Uma comunicação clara e focada no concreto, segundo analistas, torna-se um trunfo neste segundo turno para que as campanhas consigam falar à classe C. Além disso, a religião, identificada como algo relevante para esse grupo, também já tem aparecido como protagonista na disputa nas redes socais e deve continuar em evidência.

Especialistas apontaram erros do PT em ter se utilizado, por exemplo, de artistas e intelectuais para buscar voto para Lula no primeiro turno. Prado diz que o grupo enxerga “um discurso de lacração, de esquerda arrogante progressista ou de um vitimismo, de grupos como os gays”.

Ele cita o movimento nas redes sociais que estimulava eleitores do PT a fotografar 13 livros de cor vermelha. “Muitos pensam: nunca li nem 13 livros, quanto mais vermelhos”, diz o antropólogo. O partido tirou os artistas e passou a veicular vídeos com pastores evangélicos logo nos primeiros dias da campanha do segundo turno.

O desafio da comunicação também aparece no discurso de não violência, contra as armas, diz Prado, já que a população se vê entre facções criminosas e tráfico. A evidência de que o aumento no número de armas leva a mais violência, demonstrada em pesquisas, é mais difícil de explicar do que o discurso de que a arma serve para a pessoa se defender.

A religião surge, de acordo com analistas, muito atrelada aos valores morais na classe C. “Uma parte da narrativa desses segmentos de direita é de natureza dos costumes, há uma recuperação de um sentimento conservador, colado na fé religiosa, que existe na sociedade e foi trazido para o centro do debate”, diz o professor José Álvaro Moisés. A polêmica em torno da visita de Jair Bolsonaro a Aparecida foi um dos temas que se destacaram nas redes sociais na semana passada.

Apesar de as últimas pesquisas mostrarem que 30% da população é evangélica, como o último Censo demográfico foi feito em 2010 (e deveria ter sido repetido em 2020) os números podem estar defasados. Outros 50% se declaram católicos.

Como cristã, valorizo a família, a vida, sou contra o aborto, contra corrupção”, diz Andreia Bassan, de 47 anos, que é evangélica. Ela e o marido têm uma microempresa de cursos online de artesanato. Seu voto é convicto em Bolsonaro. “Ele veio para mostrar as coisas que a gente não enxergava, fomos muito enganados pela política. Se ele não tivesse esse jeito de falar, o sistema já teria engolido ele.”

Andreia mora na zona norte da capital e reclama de não poder trabalhar durante a pandemia e de ser obrigada a “entrar como bandida em seu escritório”. O casal não se vacinou contra a covid por não acreditar no imunizante “feito às pressas”. “Meu marido pegou covid no começo da pandemia, foi terrível, estávamos sem plano de saúde, mas sou uma mulher de fé.”

A carioca Cleonice Vieira, professora de Inglês aposentada, de 59 anos, que é católica, diz que também se apega à fé, mas vota em Lula. “Se Bolsonaro fosse cristão, ele não deixaria as pessoas morrerem, não atrasaria a vacina”, afirma. “A pobreza voltou, as pessoas estão morrendo de fome, de frio, sem casa.” A professora e o marido, mecânico aposentado, vivem na Ilha do Governador, no Rio. Ela diz que seu voto é “por uma vida mais justa” para todos. “Nossa vida é política, não vivemos sozinhos.”

Para Moisés, o resultado do primeiro turno mostra que as lideranças políticas precisam fazer uma autocrítica e reaprender a engajar a população. “Com as mudanças tecnológicas, o modo pelo qual esses novos segmentos sociais se expressam não é mais analógico, não mais através de lideranças de partidos. Há acesso imediato à informação na internet, é possível compartilhar narrativas próprias.”

Segundo ele, é essencial uma escola mais crítica para crianças. “Nossa educação trata a coisa pública como se ela não tivesse nada a ver com os direitos do jovem. Se quisermos avançar para unificar igualdade e liberdade precisamos mudar o ensino.”

 

Fonte: O Estado da Bahia

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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