X. Histórias e Memórias de uns tempos vividos em Salvador – Segunda Metade do Segundo Semestre de 1976 – Um primeiro voo nas asas da liberdade – José Jorge Andrade Damasceno

Quando dona manda desceu do Pirulito antes que ele chegasse na estação São Francisco, passava pouco das nove da noite, horário de chegada daquele famoso trem de passageiros vindo de Salvador. Temporariamente impedido de prosseguir até a gare, por conta de uma agulha fechada, o comboio parou na frente da Venda de Seu Neco, o que permitiu dona manda tomar a decisão de descer ali mesmo com o seu filho que trazia de Salvador, pois, apenas cerca de trezentos metros os separavam da modestíssima casa onde moravam.

Logo que chegaram, puderam saciar a fome após um “café” que, embora “simples” em sua composição, consegui alimentar satisfatoriamente mãe e filhos.

De volta àquela cama que fora feita pelo seu irmão mais velho, quando trabalhara com aprendiz em uma carpintaria, este escrevedor dormira profundamente por conta do cansaço da viagem e da noite anterior muito mal dormida.

No entanto, ao acordar ainda na madrugada fresca da sua Alagoinhas, com aqueles seus cheiros característicos entrando pelas frestas do telhado, aspirou fundo aquele ar e, enfim, pôde sentir de fato que não mais estava preso àquelas paredes que lhe impediam de sentir aquela sensação matinal de bem-estar. Não tendo sido acordado por uma sirene rouca e irritante, que cortava o sono em seu melhor desfrute, passou a pensar no modo como retomaria a sua vida escolar, a partir de então, sem a assistência de professoras itinerantes, que fariam a “ponte” entre aquele aluno solitário e os seus professores.

Bom, mas aquilo importava pouco, O que importava mesmo é que estava livre da prisão institucional; que poderia ir e vir, quase sem restrições. No entanto, embora ainda tão novo, já entendia que muitos seriam os esforços que precisariam despender para a abertura de picadas, a escalada de serras, a travessia de desertos, a transposição de barreiras as mais diversas e, em grande parte das vezes, teria que fazer frente a tudo isto, sozinho.

A sua passagem meteórica pelo Instituto, lhe fizera perceber tudo isto, bem cedo. Até havia pessoas que desejassem, sinceramente, o ajudar a fazer os percursos que a vida lhe exigia – aliás, não só a ele, mas, a todos quantos estão postos sobre a Terra. NO entanto, as especificidades que envolvem o trilhar das pessoas cegas, muitas vezes, são impeditivas de ações de terceiros em apoio ao seu caminhar. Fique claro que, muitas  pessoas, efetivamente, contribuíram em diversos momentos do jornalhar deste garatujador, no sentido de prover o necessário para determinadas etapas do seu viver. O que se quer dizer é que, há momentos no caminhar da pessoa cega que só ela, e apenas ela, pode dar ou não o próximo passo. É assim com todos, vão dizer alguns e, com razão. Sim, de fato, assim é. Mas, há circunstâncias, situações e necessidades que são inerentes ao ser cego, ou melhor, ao viver da pessoa cega.

Naquela manhã primaveril, ainda aos primeiros raios do sol, ele se levantara, tomara o seu café – bem diferente da manhã anterior – e, saíra de casa decidido a retomar a sua liberdade nas mãos, liberdade que lhe fora tirada mediante promessas não cumpridas e expectativas frustradas. Esta retomada, como já se frisou, teria um custo e, embora ele não tivesse a exata dimensão de qual seria aquele custo, estava decidido a enfrentar e pagar.

Tendo tomado de seu pedaço de pau que lhe servia de bengala, foi até a venda de seu Amôzinho e ali, esperara o ônibus que o levaria até o terminal da Castro Leal, de onde seguiria a pé, até o Centro Integrado Luiz Navarro de Brito – o Estadual -, onde procuraria matricular-se para concluir o ano letivo. Nem sabia que precisava de transferência – ou acreditava que aquela já havia sido enviada pela instituição de onde fora convidado a se retirar. Lá chegando, procurou falar com todos que conhecia; conversar; matar a saudade de estar em um lugar que escolhera e que gostava de estar.

Dirigindo-se à secretaria, lá estava seu Faustino, solícito e gentil, dando ouvidos àquele moço que queria se matricular, sem ter levado um único papel. Depois de algum tempo – talvez orientado pela então diretora Ines Mercuri, seu Faustino noticiou ao rapaz:

– Venha amanhã para assistir aula. Será no vespertino.

– Mas, olhe: providencie a transferência, pra gente botar as suas notas da primeira e segunda unidade. Aqui, a gente só poderá botar as notas a partir da terceira unidade.

Feitas as tratativas e recebidas as recomendações, no dia seguinte, este escrevente já estava devidamente instalado em sua nova sala de aulas, na sextav13, talvez! Mas, como providenciar os documentos recomendados pelo secretário da direção? Como ligar para o Instituto, com a maior cara de pau, a fim de pedir que enviasse a tal transferência? E mais: onde encontrar alguém que possuísse um telefone e, que o franqueasse para que pudesse fazer uso para aquele fim?

Era ano eleitoral. Campanha para a Câmara de Vereadores e para a Prefeitura Municipal de Alagoinhas. Os candidatos distribuíam fartamente panfletos, cartazes, quitação de débitos… Este narrador ganhou as fotos 3×4, necessárias para compor a ficha no “ESTADUAL”; tais foram tiradas no “Foto Cardoso”, cujo proprietário, senhor João Cardoso, aliás, era um dos pleiteantes a uma das 13 cadeira do parlamento municipal.

Cabe ressaltar de passagem que, para o autor destas linhas, aquele período foi marcado por um estreitamento das suas relações com os seus irmãos paternos, apenas iniciadas a partir dos meados de 1974, quando travou os primeiros contatos com os três netos de dona Ladi, em suas incursões iniciais no sentido de conhecer os espaços próximos ao lugar onde vivera toda a sua infância, adolescência, juventude… Longas e proveitosas tardes – ou manhãs – de conversas com dona Ladi que cuidava de Miguel – que tinha a mesma idade deste escrevedor -, Edgarzinho e Alva – com dez e sete anos -, além de Ednaldo, que ela criava como se filho ou neto fosse.;

Naquele mesmo período, se passou a frequentar com alguma regularidade, a casa de João, um de  seus irmãos mais velhos – mais tarde, passando a frequentar a casa de Edna, a única filha legítima de seu Edgar, um dos açougueiros de Miguel fontes -, primeiro na companhia de Miguel; depois, ganhando autonomia e indo só, para boas conversas, audições de rádio em um Motorádio de João, algumas tragadas de Hollyood ou Continental na companhia de Ivete, sua consorte, além de saborosos almoços dominicais.

Entre idas e vindas da escola ou das visitas aos seus irmãos, entre fazer e desfazer de planos, chegou-se a um que, acreditava, conseguiria atender à expressa recomendação de seu Faustino: “Traga a transferência”. Ou mesmo, dado o passar do tempo, às cobranças do atento secretário:

– Cadê a transferência?

Em uma dada manhã, por volta das oito horas, saíra dizendo a dona Manda que iria na casa de “Ivete” e que ficaria lá para o almoço. Ela, por sua vez, reiterara a recomendação de que chegasse em casa no horário que previamente estabelecera, por rigidez ou medo: as seis da tarde. Tendo descido do coletivo no terminal, ao invés de se dirigir ao Jardim Pedro Braga, onde moravam seu irmão, consorte e filhos, dirigira-se até a “Agência da catuense”, de onde saíam os ônibus para Salvador e, entrando em um deles, seguiu para fazer a sua primeira investida na cidade onde só circulara de carro, ou, quando não, acompanhado por um funcionário do Instituto.

Tudo correra conforme o planejado: fora no Iceia, fizera as tratativas referentes à transferência escolar; recebera e trouxera consigo; por fim, dirigira-se de volta ao terminal rodoviário de Salvador, intentando retornar para Alagoinhas, mais ou menos dentro do horário expressamente determinado por sua mãe, para que chegasse em casa. Tudo correra dentro do pensado.

Mas, um longo e quase interminável engarrafamento na região da barros Reis, que dava acesso à BR324, que por sua vez, permitia chegar à ba093, por onde se chegaria até a Alagoinhas, fez com que a última etapa do plano falhasse e, por volta das dezenove e trinta, este escrevedor descia do coletivo na esquina da venda de Seu Amôzinho e, dava de cara com dona manda, enfurecida e inquisidora:

– “Tava aonde que chegou a esta hora?”

– Na casa de João, mãe.

Passado o susto e, acreditando ter convencido dona manda com a sua resposta, no dia seguinte,  ele entregou triunfalmente a Transferência do Iceia a seu Faustino, resolvendo a sua pendência com o Estadual.

Mas, passados alguns dias, dona manda voltou a inquirir do filho, se ele estivera mesmo na casa de João naquele dia, como dissera, se fora visto vindo de Salvador, no mesmo ônibus cujo cobrador era vizinho e conhecido? Confrontado daquele modo, o rapaz contou a ela a sua aventura e a necessidade de tê-la realizado.

Mas, mesmo o insólito cobrador tendo desconstruído o álibi criado por este autor para aplacar a ira de sua mãe, não lhe pôde podar a efetivação do seu primeiro voo, proporcionado pela liberdade recentemente conquistada.

Como não poderia faltar, havia um bom número de músicas que eram ouvidas por este escrevente naquela ocasião, que poderiam ser aqui elencadas. Mas, como é preciso escolher uma, aquela que se destaca na sua memória e, que bem retratava o momento e as circunstâncias que o envolvia, é “Apenas um Rapaz Latino-Americano” do cearense  de Sobral, belchior (1946-2017).

https://youtu.be/BxPJodiQyQU

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

 

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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