VIII – Histórias e memórias de uns tempos vividos em Salvador- Os dois desterros – José Jorge Andrade Damasceno

Três foram as vezes em que este escrevedor fora forçado a morar em Salvador. As duas primeiras, estavam relacionadas com a necessidade de estudar, visto que à época, ainda não era possível a uma pessoa cega e que morasse fora da capital do estado, ser inserida no contexto de um processo de formação educacional, sem que precisasse ser desterrada do seu convívio social e do espaço em que houvera nascido, a fim de ser internado em uma instituição de ensino “especializada”, para que ali fosse alfabetizado e, posteriormente, fosse inserido no processo de escolarização regular.

Em agosto de 1967, não tendo ainda completado os sete anos de vida, este escrevedor fora levado para o “presídio dos cegos” pela primeira vez, a fim de ser “alfabetizado” e, claro, preparado para ser “alguém” na vida, quando crescesse.

No entanto, ao voltar em dezembro, apesar de alguns poucos progressos no que tange a apreensão de novos hábitos, pouco fora possível aproveitar, em virtude da realidade social e econômica por ele vivida, estar muito distante daquela que lhe fora apresentada. Mas, o que trouxera de concreto e palpável, fora uma magreza tal, que o seu padrasto comentara, para a fúria da mulher:

– Manda, Jorge está tuberculoso!

E olha que na véspera da volta para casa, por ocasião do encerramento do ano letivo no Instituto, em festejo a sua padroeira,  foram distribuídos inúmeros presentes e guloseimas, ele passou toda a noite que antecedeu a volta para casa, comendo uma caixa de chocolates, iguaria que pela primeira vez lhe era dado a conhecer.

Voltando ao que o menino trouxera de concreto dos seis meses que passara sendo “civilizado”, além de uma cicatriz na testa, produzida por um encontrão em uma das paredes do prédio, enquanto brincava com um outro menino de sua idade, estavam instalados dois hematomas – ou eram furúnculos -, mais ou menos do tamanho de uma laranja de umbigo: uma do lado direito das costas, antes da bunda; o outro na parte posterior da coxa esquerda, logo após a bunda magra do coitado.

Foram aplicados muitos remédios caseiros que ensinaram a dona Amanda: sumo de mastruz, vassourinha, emplastros e “papas de alho”; além de purgantes, “mingau de cachorro” e inúmeras outras beberagens, cujo objetivo era sarar inchaços  e coceiras que acometeram ao moleque.

Diante daquilo, dona Amanda decidiu não fazer o seu filho retornar no ano seguinte, convencida que os maus tratos não compensavam o dito “preparo para o futuro” do menino. Tal decisão acabou por não trazer prejuízos a este escrevente, visto que, no início do ano de 1969, ele fora integrado a uma experiência de “escola para cegos”, implementada por alguns idealistas e, levada a cabo no espaço da Escola Brasilino Viegas. O bom aproveitamento daquela experiência, o conduziria aos passos seguintes, tais como a matrícula no centro Integrado Luís Navarro de Brito (Estadual), para cursar a então quinta série do primeiro grau. Que alegria para este escrevente, foi poder estudar no Estadual, na sua própria cidade, com colegas que residiam, andavam, aprontavam as estrepolias de jovens estudantes, na mesma cidade em que ele também vivia.

Mas, aí veio o segundo desterro. Por conta da interrupção da assistência tiflológica, propiciada como desdobramento da experiência iniciada em 1969, viu-se uma vez mais tendo que aceitar ser, outra vez, interno no mesmo lugar de onde saíra há alguns anos e, que, esperava não mais voltar.

Sob a promessa de que no Instituto de Cegos da Bahia, ele teria maiores condições de alcançar os seus objetivos de estudante, que ainda não completara quinze anos, visto que lá, os recursos tiflológicos eram maiores e de mais fácil acesso: material em braile para ler; locomoção, curso que lhe permitiria andar só – embora ele já houvesse dado os primeiros passo neste sentido, claro, à revelia dos interditos oficiais -, um curso técnico no Senai, que lhe daria uma profissão, por meio da qual poderia prover a si e a sua mãe, deixara uma vez mais o seu espaço de convívio, vivência e convivência com as gentes com as quais crescera e sempre se relacionara, para passar meses a fio trancafiado em um espaço de concreto, que só deixava para ir à escola: primeiro o Complexo Escolar Carneiro Ribeiro Filho; depois, o Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA).

Qual nada. Um ano e meio de reclusão: fome, frustrações sem fim, decepções sem conta, fizeram com que o rebelde alagoinhense chutasse o pau da barraca, virasse a mesa e, começasse a forçar o retorno a liberdade, embora isto significasse o aumento exponencial das dificuldades, no que tange a tão precisada formação para a vida.

Muito se aprontou. Chamado a consultar-se com uma psicóloga em quem ninguém confiava, limitou-se a dizer que fora enganado. Levado até a Assistente Social, igualmente desacreditada por quase todos, dissera-lhe que voltara ali para ganhar formação. E o que se teria feito naquela direção? Quase nada. O que tinha, era o que já levara consigo: a formação escolar.

A Assistente Social retrucara que, diante do seu mau comportamento, nada se poderia fazer em seu favor. Prometeu comportar-se melhor. Mas, depois de algum esforço e passadas algumas semanas sem que nada de concreto fosse feito, voltara a carga, com ainda mais força.

Em julho de 1976, por ocasião de um torneio de marcara a comemoração do bicentenário da independência dos Estados Unidos da América do Norte, surrupiou-se um rádio no armário de uma colega, para que por ele, fosse possível ouvir o jogo do Brasil. O dito foi devolvido em mãos, no dormitório das meninas, espaço terminantemente proibido de ser visitado, sobretudo, a noite. Foi um burburinho! A música de Ednardo “Pavão Misterioso”, embora tivesse como tema os “anos de chumbo” que pesavam sobre o Brasil de Geisel, foi a trilha sonora do rumoroso episódio

Na semana posterior ao pretenso acidente que matara Juscelino Kubitschek, um grande levante de travesseiros se fez ouvir em meio ao silêncio obrigatório. Ao descer para repreender os insurretos, a diretora arrancou a todos da cama, mesmo aqueles que fingiam dormir, como este garatujador. E, o sujeito estava tão magro, mas tão magro, que aquelas cuecas de copinho, não conseguiam ficar no lugar que lhe era destinado. Mesmo assim, quase nu, ele, como todos os participantes ou não da algazarra, fora retirado do quarto e, levado para ouvir a reprimenda que, entrara pelo direito e saíra pelo esquerdo. Depois, como castigo, todos foram distribuídos pelos seis andares do prédio – exceto o quinto onde ficavam as gurias -, tendo de ficar ali, até que fossem chamados a voltar para a cama.

Este garatujador foi mandado para o segundo andar. Lá, procurou um lugar quentinho; lá se deitou no chão e, ali, dormiu. Acordado com os tapas e repreensões da chefe:

– Não mandei você aqui para dormir. Suba!

Em setembro, daquele ano da graça de 1976, como um presente de primavera, este narrador foi solenemente devolvido à liberdade dos pássaros; também lhe foi devolvido o sorriso de quem volta a respirar o ar do lugar que lhe foi berço.

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

Menu de Topo