VII. – Histórias e memórias de uns tempos vividos em Salvador – Antes da virada da maré, algumas amenidades – José Jorge Andrade Damasceno

Ainda mal amanhecera e, Dona Manda levantara, dera café ao filho e, fazendo o percurso a pé, se encaminhara até a Estação São Francisco, com o intuito de pegar o Pirulito, que os levaria para a cidade de Salvador. Ali, ele ficaria interno no Instituto de Cegos da Bahia, conforme acertado previamente com a última professora itinerante que atuara em Alagoinhas: Primitiva Sampaio, era o seu nome. Aliás, foi a sua remoção, para acompanhar o marido que era militar, que acabou por colocar fim na exitosa experiência desenvolvida no Brasilino Viegas, que permitiu o arranque deste escrevente, na direção da formação profissional, claro, não sem inúmeros percalços.

Aquela madrugada outonal se levantara com alguns laivos de esperança, trazendo aos caminhantes, os seu cheiro de alvorada, o primeiro chilrear da passarada, indicando que, talvez, ao iniciar a sua trajetória rumo à maturidade, aquele menino não viesse a esquecer daquele lugar, embora desprovido de trato urbanístico, que era o espaço que ele conhecia bem; que ele podia explorar sem sobressaltos; que os cheiros de matos e flores silvestres enchiam-lhe os pulmões de frescor e, talvez o preparasse para as intempéries que viesse a enfrentar, naquele caminhar por espaços ainda desconhecidos dos seus pés.

Da viagem no Pirulito, pouco ou nada restou na memória daquele menino, a não ser os rumores de vendedores de todo o tipo de mercadorias e, claro, de não haver recursos para provar nenhuma das muitas iguarias oferecidas a cada parada nas estações. Chegando por fim na estação da Calçada, logo encontraram transporte que os levasse até o Largo de Meninos, de onde subiriam a pé, rumo ao bem conhecido prédio que ficava em frente à Ladeira de Água Brusca, que dava acesso à rua São José de Baixo, que seria o destino dos chegantes.

Portanto, quando voltara ao internato soteropolitano pela segunda vez, em março de 1975, ainda não se tinha completado o primeiro ano do falecimento de Zé Carlos, que se dera no junho anterior. Como já se disse, este escrevente e aquele seu irmão, embora experimentassem os brigares inerentes à diferença de idade entre eles, tiveram um convívio de boas brincadeiras, traquinagens e, até mesmo, algumas cumplicidades. O menino era por demais irrequieto e, algumas de suas travessuras foram ocultadas de Dona Manda, para evitar severa surra.

Por sua vez, Dona Manda nunca se recompusera da perda do seu filho mais velho, que para ela fora um golpe tão rude quanto inesperado, visto que a repentina aparição de um câncer o levara de maneira assaz precoce. Mesmo assim, naquela manhã de algum dos dias ensolarados de março, deixara o seu peralta mais novo, aos cuidados da instituição que, acreditava-se, lhe daria ferramentas que o tornaria capaz de prover a vida, quando chegasse o momento de o fazer.

Engolindo o choro, o garoto fora separado das grossas, ásperas e calosas  mãos de sua mãe e, encaminhado para longe dos seus olhos.

Ele lá chegara em um horário em que os demais internos já estavam envolvidos em suas rotinas: uns nas escolas regulares onde estudavam; outros no segundo andar, onde eram desenvolvidas as atividades de alfabetização de uns e, de apoio escolar para aqueles outros que já estudavam fora, mas no turno vespertino. Portanto, o garoto ficara só e desolado, podendo desatar o seu mar de lágrimas mal retidas, para não ferir ainda mais o coração fragilizado de sua mãe, ou, quiçá, para talvez parecer forte, a si e a ela. Aliás, conforme disse sabiamente um amigo outro dia, ele que também vivenciara circunstância parecida, é ali que, literalmente, “filho chora e mãe não vê”.

Pouco a pouco tentara se acostumar com aquele pequeno espaço de concreto e cimento armado, que, a partir daquele dia, circunscreveria os seus passos, os seus atos, os seus quereres, dos seus desejares.

Logo alvo da curiosidade dos demais internos, com alguma dificuldade e outro tanto de má vontade, ele foi respondendo aos que perguntavam.

Um funcionário antigo, muito benquisto e respeitado por todos, tratou de fazer as apresentações, no sentido de tentar quebrar o ar de tristeza que marcava o recém-chegado.

A um ele dissera que chegara um colega para com ele “lutar pernada”; a outro disse que chegara mais um para estudar  e conversar… O certo é que, dentro de alguns dias, já que outro remédio não havia, este garatujador se enturmou, fez as suas escolhas e, procurou viver a realidade que se lhe apresentava. O frequentar a escola, certamente, ajudou bastante na consolidação daquele difícil processo.

Sem notícias de mãe ou de casa, seguira o curso das coisas, até que, enquanto era levado para o Carneiro Ribeiro, ouvira no rádio da Kombi, uma notícia informando que o deputado Ulysses Guimarães e o senador Orestes Quércia, importantes dirigentes do MDB Nacional, estavam em Alagoinhas, com o objetivo de oferecer apoio ao prefeito Judélio Carmo, que acabava de ser afastado do cargo, por meio de um processo tramitado na Câmara de Vereadores. Era maio e, só então, ouvira alguma notícia da cidade, que deixara dois meses antes.

Mas, enquanto o tempo passava, os cursos esperados e desejados não chegavam e, o garoto velozmente emagrecia – a roupa que em março era vestida com dificuldade, àquela altura, já estava  muitíssimo folgada no seu corpo -, em pelo menos duas ocasiões, os internos tiveram um dia de festa, música e fartura.

Em uma delas, a mesa fora tão farta, a comida tão abundante, que os dias posteriores foram lembrados com saudades e lamentos. Não ficou na memória deste narrador, o que fora efetivamente comemorado. O que ficou e muito bem nítido foi o fato de que, pela primeira vez desde que ali chegara, pudera comer o bastante para saciar a fome, embora não o suficiente para recuperar os vários quilos já perdidos.

Em outra ocasião, realizou-se uma comemoração coletiva de aniversários. A comida não foi farta. Mas o dançar e o cantar, talvez tenha feito esquecer um pouco os muitos ais. Uma das aniversariantes cantara maviosamente o grande sucesso dos anos sessenta, que fora imortalizado por uma garota italiana, então com dezesseis anos, Gigliola Cinquetti, notabilizado pelo  filme que levava o mesmo título da música, que, naquele momento, voltava a ser sucesso, daquela vez, em uma versão interpretada pela cantora Perla: Dio Come Ti amo – Deus como te amo.

Versão original em italiano:

https://youtu.be/2I3GonJRwJA

A versão em português:

https://youtu.be/XSEq7UWhgIQ

Ressalte-se que, naquele momento, o garoto que ainda não completara quinze anos e, que estava em pleno processo de formação, queria acreditar no amor, decantado nas novelas e nas músicas  que brotavam em profusão no rádio e na televisão e, romantizado na literatura que caíra nas mãos daquele leitor voraz. No entanto, com o passar do tempo e o correr da vida, este aprendiz de cronista compreende que é impossível acreditar no amor. A exceção é o amor do Deus Eterno, que “é Singular, ninguém jamais, pôde explicar”. Aquele é um amor que foge à compreensão humana, mas que é real, incondicional, impossível de ser medido ou calculado, independentemente de ser crido ou aceito pelo mundo criado.

No entanto, embora sem a maviosidade e a singeleza daquela aniversariante, este escrevedor também cantou! Mas, o que? Uma música que talvez fosse um recado para quem pudesse ouvir, visto que apresentava a instalação da rebeldia naquele garoto, em forma de letra e de música. Não foi ela escolhida sem razão. Era cantada magistralmente por Beth Carvalho; era o já conhecido Jorge Grande quem cantava, com toda a força dos seus catorze anos: mil e oitocentas colinas, música que estava muito bem colocada entre as mais executadas no rádio, recém-lançada, mas, já “na crista da onda”, como se dizia à época.

https://youtu.be/ClWse7GdrvE

Ah, é preciso salientar que, os dois intérpretes amadores, cantaram as suas páginas musicais, à capela e, que as interpretações foram ouvidas em todo o prédio, pois, a festa fora transmitida em um sistema de som, distribuído por todos os seis andares do monstruoso edifício.

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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