Revisão da Lei da Anistia divide juristas
uristas divergem sobre a possibilidade de o STF (Supremo Tribunal Federal) rever o entendimento acerca da Lei da Anistia sedimentado em 2010. Na ocasião, a corte rejeitou ação em que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) pedia que crimes praticados por agentes da repressão durante a ditadura militar (1964-1985) fossem considerados comuns, e não políticos (passíveis de perdão).
O debate ganhou novo sopro porque integrantes da Comissão Nacional da Verdade passaram a defender a inclusão, no relatório que o grupo deve apresentar no ano que vem, de um pedido de revisão da lei, para que militares envolvidos em casos de desaparecimento, tortura e morte no período sejam punidos.
Além disso, o mestre em sociologia do direito Renan Quinalha aponta outro fator que tem incentivado a reinterpretação da lei: a estratégia adotada pelo Ministério Público Federal em 2011, de apresentar denúncias contra militares com base na figura jurídica do crime permanente.
Pelo menos três dessas ações já foram aceitas pela Justiça e se tornaram processos penais. O argumento aqui é o de que, no caso de vítimas da repressão que desapareceram e cujos restos mortais não foram localizados, a ação criminosa iniciada na ditadura ainda estaria em curso.
Segundo Quinalha, essa pulverização de ações sobre o mesmo tema põe o Brasil no caminho aberto por procuradores da Argentina e do Uruguai, que provocaram disputas no Judiciário a partir de denúncias pontuais.
“Ainda que haja mais derrotas do que vitórias, [essa tática] serve para colocar a matéria em pauta e eventualmente criar jurisprudência”, diz ele, também autor do livro “Justiça de Transição: Contornos do Conceito” (Expressão Popular).
“No Brasil, a OAB escolheu questionar a aplicação da lei em termos abstratos. Acho que houve certa precipitação em levar a discussão direto ao Supremo.”
CONDENAÇÃO NA OEA
Em 2010, meses após a decisão do STF, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos, condenou o Estado brasileiro a punir os responsáveis pelo desaparecimento de 62 pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia (1972-1974).
Segundo os juízes, “as disposições da Lei da Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana [da qual o Brasil é signatário]”.
“Não há como não cumprir [a sentença]”, afirma Quinalha. “Não faz sentido aderir à Convenção Americana de Direitos Humanos se não se adere à jurisdição da corte correspondente.”
“A OEA estabeleceu que não há anistia para crimes contra a humanidade nem autoanistia. Como os militares ainda estavam no comando quando a lei foi promulgada, ela não tem valor jurídico”, avalia o professor emérito da Faculdade de Direito da USP Dalmo Dallari.
O professor emérito da Universidade Mackenzie Ives Gandra discorda. “As cortes internacionais só funcionam nos casos de omissão da Justiça local. A nossa Constituição determina que lesões de qualquer natureza sofridas aqui devem ser levadas a tribunais brasileiros. E o STF já definiu sua interpretação.”
Para ele, não há “nenhuma possibilidade de sanção ao Brasil [por eventual descumprimento da sentença da OEA]”, porque “a Corte Interamericana recomenda, e só”. A tese do crime permanente invocada nas denúncias atuais da Procuradoria-Geral da República e na sentença da Corte Interamericana constitui uma “ficção jurídica”, na visão de Gandra.
Fonte: Folha de São Paulo