Reações ao ler Bocage
Recentemente recebi um desafio, uma pergunta revigorante: Por que vale a pena ler Bocage hoje?! São tantos autores da atualidade que escrevem muito bem sobre o tema. Para providenciar a resposta iniciei minha jornada fazendo uma releitura de algumas poesias do desbocado e não posso negar que três reações não deixavam de saltar à face – rubor, riso e deleite. Ao reler alguns que tive contato quando garota (e, na época, ingênua até a medula óssea) percebi que ao ler sua obra hoje a situação é muito mais interessante! Relembrei como é deliciosamente mágico reler algo na vida adulta que nos inquietou na juventude… parafraseando Ítalo Calvino, na releitura, os clássicos se revelam novos, inesperados e inéditos.
Esse inusitado senhor, Manuel Maria Barbosa du Bocage, deixa às claras que a sensualidade, o desejo, o erotismo, tanto nas atitudes, quanto nos pensamentos, sempre habitaram o coletivo humano. Ele exprime de forma eloquente o que muitas vezes se pensa, mas que poucos ousam escrever. Até mesmo na atualidade, onde há um movimento forte de liberalismo e despudor, as pessoas e autores que expõem seus pensamentos eróticos, suas fantasias, continuam sendo censuradas. Uma infelicidade essa realidade, porque é possível trazer reflexões aprofundadas ao se falar livremente e de forma artística, através da literatura, de temas tão intrinsecamente ligados à essência humana. Ignorar a maestria desse gênio demonstra como ainda há hipocrisia e como as pessoas ainda se escondem através das convenções.
O que mais me encanta em Bocage é que ele fala sobre o que todo mundo já sabe. Ele aborda o que há de belo, bruto e vulgar no mundo. Em seus escritos, escracha, fala abertamente de vários temas, e utiliza uma linguagem popular e acessível, um recurso pouco habitual pra sua época. Ele faz-se interessante pela sinceridade cortante, ousada e desprovida de rodeios, muito bem escrita, que causa constrangimento nos leitores mais castos e delicia àqueles que são mais dados aos prazeres mundanos. Outro grande motivo de ter se tornado um autor imperdível é por ter ido de encontro ao considerado apropriado para um escritor em sua época.
Deixo como presente aos leitores minha poesia favorita dele, o Soneto do Prazer Maior.Ler Bocage vale a pena até hoje porque escreveu maravilhas, cheias de originalidade, bom humor, cinismo e rebeldia. Porque é um ícone, um marco, um gênio indomável! Sempre haverá quem o deteste (principalmente em seu tempo), mas muito mais são aqueles que o amam. Ir de encontro à ordem das coisas foi o risco que assumiu, mas também o caminho para alcançar a imortalidade, uma vez que vive até hoje em nossas mentes, seja através de leituras prazerosas ou olhares de reprovação, bem ao gosto do freguês.
Deixo como presente aos leitores minha poesia favorita dele, o Soneto do Prazer Maior.
Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:
Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:
Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.
Sintia Piol
Artigo exclusivo para o Alagoinhas Hoje