Querendo ou não, estamos relacionados mesmo com diferenças políticas – Roberto DaMatta


Não concordamos nas nossas escolhas e podemos “discutir” enfaticamente quando falamos dos nossos times de futebol, sobretudo quando o seu perdeu, e o meu ganhou. Do mesmo modo, eu como “de tudo”, e você é um vegano convicto.
A ideia de liberdade tem muitas dimensões e, por isso, não sobrevive se eu não deixar que você exerça suas escolhas mais singulares e íntimas ao lado das mais gerais e públicas. Por exemplo, eu não deixaria você sair nu pela rua; ou matar uma pessoa porque ela votou num candidato que você rejeita.
Limites psicológicos governam o mundo cotidiano da casa, normas impessoais comandam o universo da rua. Ambos, porém, são parte de uma matriz sócio-histórico-cultural que organiza esses espaços de escolhas de modo a coordená-los. Não se pode viver em liberdade tendo um prefeito ladrão, um governador corrupto, um Judiciário parcial e um presidente incapaz de agir com bom senso numa pandemia e no cotidiano.

A corrupção é um fato universal e, como dizia Durkheim, ela só é normal se for reprimida. Se for mascarada ou mistificada como malandragem ou possível estratégia política, vira um valor com as consequências que conhecemos tão bem no Brasil.

O presidente Bolsonaro dizia que “jogava dentro das quatro linhas”, remetendo sua conduta ao ideal de justiça do futebol. Mas, se essa é sua ética, assusta o modo com que ele se recusou a admitir a frustração da milimétrica derrota para Lula. Dentro do mesmo quadro ético, porém, o presidente eleito foi julgado, condenado em duas instâncias e solto por motivos processuais — um caso de geografia, e não de criminalidade. Algo que ocorreu em paralelo à transformação surreal de uma operação anticorrupção em instrumento político quando os investigadores viraram bandidos. Dir-se-ia que a orientação ética dominante foi pautada pela oposição “esquerda-direita”, com a tradicional suposição da superioridade moral da esquerda, ao lado do esquecimento de que, querendo ou não, essas posições são parte de um todo. Pois não há “progressistas” sem “conservadores”, e não há como esquecer que os lados constituem um corpo social. Penso que a tensão não veio somente da vitória de Lula, mas sobretudo da presença da “direita” no cenário eleitoral. Uma presença que deixa os bastidores para entrar no palco, do mesmo modo que sucedeu com o lulopetismo.

Entretanto nada justifica a demora-com-resistência e a frustração em reconhecer a derrota, exceto o ensaio trágico e irresponsável de uma gravíssima convulsão nacional, pois — querendo ou não — ricos ou pobres, esquerdistas ou reacionários, progressistas ou conservadores, vencidos e derrotados — todos têm um elo maior do que eles gostariam de reconhecer.

Refiro-me ao todo chamado Brasil, pois é neste palco que observamos ansiosos a conduta de visões opostas no campo político das democracias — esse concordar em discordar que até hoje, como faz prova a recusa em admitir a derrota, temos dificuldade de aceitar. Até hoje, o costume nacional do empenho, do filhotismo, do jamais negar o pedido de um amigo, foi fator importante na nossa vida sociopolítica. Esta eleição e seu conturbado processo podem ser sinais de que isso está mudando no campo aberto e mais objetivo das formas de transição do poder.

Tradicionalmente, o peso dos elos familiares sempre foi forte. Elos pessoais, como estou farto de escrever aqui e alhures, resistem a juras ideológicas — o anonimato e a impessoalidade das lealdades partidárias, ao lado das circunstâncias que surpreendentemente promovem mudanças políticas. Sabemos perder melhor na vida do que na política e nos espaços institucionalizados.

A promessa de uma oposição implacável é, no nosso fosso político, mais do que bem-vinda. É justamente dessa promessa de realização do igualitário que precisamos.

Fonte: O Globo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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