O rádio foi uma escola – II – José Jorge Andrade Damasceno

O rádio brasileiro desempenhou um papel relevante no processo de massificação da cultura, da língua e de uma certa “identidade “nacional”. Já nos seus primeiros tempos de implantação e funcionamento no Brasil, o rádio já trazia na sua gênese fundadora a função de “educar”, “levar cultura” aos ouvintes, além de entreter a audiência ainda formada por uma elite social que dispunha de meios para obter a gerigonça importada como novidade que era. Segundo pesquisadores que têm se debruçado sobre a história do rádio no Brasil, para além das polêmicas de qual emissora foi levada ao ar pela primeira vez, indicam que Roquete Pinto ao idealizar a implementação do rádio, pensava em um instrumento que desenvolveria um papel complementar à escola, onde ela já existisse e, de certa forma a substituiria nas plagas mais longínquas, onde a escola não pudesse ser implantada.

Talvez aqui coubesse uma tentativa de explicação acerca do que se está chamando de “escola”, visto ter ela um papel integrador e unificador de práticas (culturais, sociais, higiênicas), de hábitos (alimentares, profiláticos,   indumentários), de costumes, de ideias e, sobretudo, a escola desempenharia necessariamente o papel de difusora, unificadora e integradora das “línguas”, além de propagadora do um ideal de “falar único”.

Nem é preciso dizer que tais eram as preocupações de governos latino americanos nascidos das “independências” dos primeiros 25 anos do século XIX, que precisava fazer com que a ideia de “”Nação” (com práticas, costumes, línguas e culturas unificados) se difundisse, se fixasse e se perpetuasse junto às populações dispersas pelos diversos quadrantes dos jovens países advindos da saída do julgo ibérico, sob o qual se constituiu e foi moldado por cerca de três séculos, todo o caldo cultural e linguístico que herdaram.

Por todo o restante do século XIX e nos primeiros 30 anos do XX, este papel teria de ser desempenhado pela “escola”, enquanto espaço físico estruturado em um lugar fixo, acanhado, limitado em seu alcance e capacidade de lidar com as inúmeras práticas culturais e linguísticas – principalmente elas, por serem o alvo das preocupações unificadoras -, tão diversas das populações que precisava alcançar.

A dificuldade da escola física desempenhar com eficácia este papel em um espaço tão vasto quanto inexpugnável, é superada então pela “escola radiofônica”, na medida em que ela tem a sua difusão exponencialmente alargada, quebrando, sobretudo, a barreira da distância e conseguindo produzir com grande êxito e rapidez, a unificação da cultura e da língua falada no país.

Falando-se especificamente do Brasil, a vastidão territorial do país e suas muitas diferenças culturais, linguísticas e identitárias, dificultariam imensamente a implantação de uma “unidade nacional”, papel que até os primeiros anos da década de 1920 era precariamente desempenhado pela escola tradicional acima descrita, não sem inúmeras descontinuidades, idiossincrasias e complicados processos de imposição de temas e textos aos poucos  alunos que a frequentavam, que muitas vezes não compreendiam bem, aqueles conteúdos enlatados e enviados direto do Rio de Janeiro, que propositadamente ignoravam as particularidades e especificidades da diversidade regional e local, exatamente para levar a bom termo o papel unificador  que precisava cumprir. Isto dificultava a implantação de uma ideia de “Nação” fundamentada no ideal de “Brasil grande”, tão caro aos seus idealizadores.

O rádio consegue esta “unificação” com mais eficiência e grande vantagem sobre a escola, na medida em que sua penetração se dava na própria residência dos seus ouvintes. Inicialmente limitada pela dificuldade de sua aquisição e manutenção, pouco a pouco superada, não só pelo barateamento do seu custo, bem como pelo seu desenvolvimento técnico, tecnológico, além de uma drástica redução no seu tamanho – quando transita das galenas às válvulas e destas aos transistores -, culminando na redução da dependência da energia elétrica e, sobretudo, uma gradativa e constante difusão de aparelhos cada vez menores e mais ao alcance de pessoas com poder aquisitivo menor, o que permite a popularização do seu uso e a “ruralização” de sua posse, abrindo a possibilidade de penetrar nos mais distantes e inimagináveis cantos e recantos do vasto território subcontinental. Como diziam os chavões pronunciados por diversos prefixos, principalmente os mais potentes: “alcançando do Oiapoque”, no Amapá, extremo norte do Brasil, “ao Chuí”, no Rio Grande do Sul.

É neste contexto que são feitas inúmeras tentativas de tornar em práticas concretas tais ideais, dando origem aos primeiros protótipos de “ensino a distância”, desde o momento em que o Estado brasileiro passa a operar diretamente as emissoras de rádio que recebem – como é o caso da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro que é doada ao governo Vargas em 1936 -, ou criam – como foi o caso das emissoras Rádio Nacional (primeiro no Rio de Janeiro; depois as de Brasília e da Amazônia).

E aqueles primeiros anos do rádio foram de aprendizado para todos: dirigentes, empreendedores, governos, locutores e, claro: os ouvintes. Era tudo novo e as experiências eram desenvolvidas no grande laboratório comunicacional em que se transformava a nascente radiofonia brasileira, onde eram apresentadas as diversas propostas de programação, esperando-se as manifestações daqueles para quem eram direcionados os “serviços” prestados pelo rádio, a fim de saber quais os frutos colhidos e se seria preciso reorientar o programa, a programação ou mesmo o perfil do empreendimento radiofônico.

Ao ouvir os programas mais exitosos transmitidos pelas emissoras dos primeiros anos de funcionamento do rádio no Brasil, disponíveis em arquivos encontrados na rede mundial de computadores, nota-se o esmero com que se apresentavam os “Speakers” (como eram chamados os locutores de então), na impostação da voz, na seriedade do tom e da expressão verbal e, sobretudo, a correção do emprego da língua portuguesa, cuidadosamente utilizada nos seus mais diversos matizes, propiciando aos ouvintes em casa e/ou no auditório, uma “virtuose”, no que respeita à riqueza do vocabulário, à sintaxe, à concordância, ao uso dos tempos verbais,fortalecendo assim o propósito de que o País não só tome contato com a língua culta, fale-a e compreenda-a, ao mesmo tempo em que massifica-a e unifica-a.

Ainda tomando como referência os programas antigos arquivados e divulgados por vários pesquisadores e em diversas plataformas, dá gosto ouvir as locuções em apresentações de programas de auditórios e/ou noticiosos, marcadas pelo vernáculo vasto, rico e refinado que eram levados ao “público ouvinte” por nomes como Ademar Casé, Corifeu de Azevedo Marques,  Almirante, César de Alencar, Lamartine Babo, Manoel Barcelos, Lauro Barbosa, Ary Barroso, Theófilo de Vasconcelos (narrador de turfe na rádio Jornal do Brasil), Luiz Jatobá,  Heron Domingues, Alberto Cury, Renato Murce Luís Vassalo, César Ladeira, Paulo Gracindo, Willian Mendonça (JB AM-RJ), Roberto Figueiredo (último locutor apresentador do Repórter Esso, levado ao ar em sua edição final em 31 de dezembro de 1968 – mesmo chorando e por alguns momentos ajudado pelo locutor comercial da emissora Plácido Ribeiro, não errou a leitura que fazia), Edgar de Souza, Milton Parron (o repórter que transmitira o famoso incêndio no edifício Joelma pela Jovem Pan) e Ivan Lessa (este já mais recente, alcançado por este escrevente em escutas na BBC de Londres), dentre tantos outros cuja enumeração tornaria estes escritos bastante alentados.

 

José Jorge Andrade Damasceno é doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense e professor titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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