Não futuro de Bolsonaro continua fascinando conservadores – Jorge Coli
“No future”. Sem futuro. Esse foi o mote da banda punk Sex Pistols. Estava numa música, “God Save the Queen”, lançada em 1977: “God save the queen/ She ain’t no human being/ And there’s no future/ In England’s dreaming”. “Deus salve a rainha/ Ela não é um ser humano/ E não há futuro/ Nos sonhos da Inglaterra”. Foi censurada e causou abalo.
Sid Vicious, que pertenceu à banda, emblema da subcultura punk, morreu com 21 anos de idade. A rainha, como se sabe, sobreviveu por muito tempo. Terminou por morrer há pouco. Nada é eterno.
Se eu tivesse que encontrar uma data simbólica para o início da pós-modernidade, seria o ano de 1977, por causa dessa música que abolia o futuro.
O clima da modernidade no século 20 envolveu o planeta. Era positivo. Todos se queriam modernos, ninguém suportava as tradições e o passado. Esse clima, para o bem e para o mal, atingiu tudo. As artes, que pretendiam reformar o gosto e as mentes humanas; a arquitetura, que construía casas para o homem do futuro; o urbanismo, que projetava cidades “futuristas”.
As ideologias políticas também caminhavam em direção a novas eras. O comunismo prometia o futuro glorioso de uma harmônica humanidade. O nazismo prometia o domínio de uma raça superior, que iria conquistar o planeta. O fascismo prometia um país eficaz, moderno, grandioso. O capitalismo norte-americano prometia uma sociedade de consumo em que os desejos seriam satisfeitos.
É impressionante o poder desses climas. São constituídos por generalidades grosseiras, mas a humanidade só consegue pensar e sentir por grandes impulsos sem nuanças.
O fato é que esses futuros promissores de felicidade não chegaram. A modernidade, alimentada por suas crenças, deixou de exercer seu fascínio e entrou em crise.
Estamos hoje nesse mundo do caótico “no future”. Na França, 89 deputados do partido de Le Pen. Na Itália, uma fascista presidente do conselho. Na Suécia, a vitória do partido de ultradireita. Nos Estados Unidos, a ameaça da reeleição de Donald Trump. O brexit no Reino Unido. A Hungria. A Polônia. E tantos países “tradicionalmente” voltados para fundamentalismo religioso. E Putin.
Bolsonaro encarna o nosso “no future”. Mesmo que ele perca as eleições no segundo turno, já é vencedor. Não poderá, como tanta gente imaginava —e eu com eles—, ser visto como um acidente de percurso mandado para a lata de lixo da história como foi Collor. Permanecerá no panorama político com muita força e prestígio. Não foi apenas o antipetismo que o elegeu, mas o medo de um futuro fantasmagórico que assusta, gatilho das convicções de um conservadorismo muito enraizado. O bolsonarismo é maior que Bolsonaro. Ele virou sua figura de proa: o barco vem atrás.
Algumas vitórias, a mais expressiva sendo a de Guilherme Boulos (PSOL), não são suficientes para transformar a situação. Os representantes no Congresso e tantos governadores da pior espécie foram escolhidos. Pensar que Marina Silva teve menos votos que Ricardo “Passa a Boiada” Salles!
Lula tem, é verdade, uma impressionante força de resistência. Enfrentou a prisão. Insistiu nas campanhas até que fosse eleito. É um político muito hábil, soube ajuntar uma frente ampla que ninguém imaginaria possível. Tem postura de estadista: o contraste com vários candidatos naquele debate digno do pior trash televisivo mostrava sua superioridade.
Ficou evidente também a superioridade inteligente de Haddad no último debate —com ele no governo estadual e com Lula na Presidência, a perspectiva é de São Paulo com projeção e desenvolvimento como nunca.
Resta um problema para a esquerda. Ela não consegue mais mobilizar de fato seus apoiadores, com alma e com fibra. Vive em regime de resistência.
É essencial essa resistência, é ela que, como pode, limita o outro lado. Mas o campo progressista precisa mais que isso para se impor com força vigorosa.
A esquerda sempre teve no futuro seu grande mobilizador. Desenhado o futuro, ela estimula para a marcha. Não é insistindo em como o passado foi bom que alguém consegue entusiasmar, e não é sem sair da bolha que se consegue expandir. Quanto não foi feito para nos confortar: vídeos fofinhos com musiquinhas engajadas e suaves destinadas ao sentimentalismo intelectual, piadinhas contra o Bozo, denúncias abstratas sobre democracia e, mesmo, denúncias concretas sobre os piores horrores; nada disso foi convincente para o lado de fora: continuam preferindo o não futuro de Bolsonaro.
Faltou um corpo a corpo com as realidades mais concretas. Uma captura honesta do presente, que trace perspectivas futuras sólidas (penso no sucesso de Boulos, com sua campanha tão vividamente ancorada nas atividades do MTST.)
Redesenhar o futuro não é fácil. Ele perdeu sua credibilidade. Nada é mais incerto que o futuro, e o primeiro turno das eleições mostrou muito bem isso: os profetas científicos dos institutos de sondagem comprovaram a incapacidade de adivinhar o que está por vir. Qualquer previsão é quimérica.
Os sonhos estão no futuro. Talvez tenham deixado de seduzir ou talvez não se saiba mais fabricar sonhos como antes.
Jorge Coli é professor de História da Arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”
Fonte: Folha de São Paulo