Impunes até agora – Chico Otavio

A frieza demonstrada pelo tenente-coronel reformado Paulo Malhães, ao descrever a sua participação na guerra suja do regime, reforçou o discurso de ativistas e formadores de opinião (entre os quais Mário Magalhães) pelo fim da impunidade aos torturadores da ditadura, até hoje protegidos pela Lei da Anistia, nome popular da Lei 6.683, promulgada pelo presidente Figueiredo em 1979.

Foi a primeira vez, como repórter, que ouvi de um agente da repressão um relato tão detalhado dos porões, incluindo a morte e métodos de ocultação de corpos. Sinceramente, admito que o relato chocante foi uma vitória profissional.

Converso com muitos militares que desempenharam papéis relevantes no período, mas nenhum deles é o Paulo Malhães, um agente altamente operativo do CIE, que participou de praticamente todas as missões importantes de combate às organizações da esquerda armada entre 1969 e 1974, com destaque para a Casa da Morte de Petrópolis, Guerrilha do Araguaia, Massacre de Medianeira (que envolve a morte do ex-sargento Onofre Pinto).

Há dois anos, quando Juliana Dal Piva, hoje repórter do DIA, e eu batemos palmas à entrada do sítio de Malhães, localizado nos grotões de Nova Iguaçu, a primeira reação do militar foi advertir que ainda sabia atirar. Eu temia os riscos, mas fui em frente porque via nessa atitude a única alternativa para avançar no conhecimento sobre os anos de chumbo.

Como sempre apostei na história oral, fiz essa parceria com a Dal Piva para listar, identificar (havia muito nome errado) e levantar o endereço de todos os “torturadores” do Rio de Janeiro referidos no projeto Brasil Nunca Mais e outras listas importantes. Malhães, após muita insistência nossa, abriu a porteira. Mas outros tantos, igualmente procurados, nos receberam com xingamentos e portas batidas na cara.

Os relatos de ex-presos sobreviventes dos porões, boa parte registrada nos processos que tramitaram na Justiça Militar, foram a grande referência do primeiro momento das investigações sobre os crimes da ditadura.

Com a democratização do país e, posteriormente, a Lei de Acesso, a pequisa voltou-se para os arquivos públicos, particularmente o acervo do SNI e do Cisa, disponíveis no Arquivo Nacional, e os papéis produzidos pelos DOPS locais, hoje guardados pelos arquivos estaduais.

Aqui e ali, ao longo dos anos, apareceram militares e civis convencidos a contar o que sabiam. Porém, de longe, essa foi a possibilidade menos utilizada.

Sempre escapa alguma coisa. Porém, como repórter, creio que já li e ouvi todos os documentos disponíveis e relatos de ex-presos que pudessem ajudar nos temas que priorizo. Por isso, acredito que a última esperança de chegar à verdade, pretendida pelas comissões criadas para investigar o período, é a conquista de novos “paulo malhães”.

Não é desafio fácil. Para quebrar o silêncio, é preciso entender a lógica desses militares. Eu os trato com todo o respeito que as fontes merecem. Uso até, confesso, algumas expressões da caserna para que eles se sintam mais à vontade. Jamais faço juízo de valor. Jamais adoto o tom inquisitório. Assim, aos poucos, vou avançando.

Não tenho uma opinião formada sobre a Lei da Anistia. Mas posso dizer que, a cada nova onda de indignação contra a impunidade aos torturadores, as fontes se retraem. Mesmo com a idade avançada e uma conjuntura política que não favorece, hoje, um debate parlamentar sobre a revogação da Lei da Anistia, esses militares de pijama têm medo. Não não se sentem tão protegidos. Seus amigos estão morrendo.

Malhães, por exemplo, tem mágoa do Exército. Me disse que, certo dia, ao comparecer ao Palácio Duque de Caxias para resolver um problema pessoal, os atendentes nem sequer lhe oferecerem uma cadeira, apesar de seus 76 anos.

Até aqui, as tentativas de levar os torturadores para o banco dos réus, em denúncias formuladas pelo grupo “Justiça de Transição” do Ministério Público Federal, foram barradas por decisões judiciais que reconheceram os efeitos da Lei da Anistia. Mesmo a tese de crime continuado, em razão do desaparecimento dos corpos das vítimas, não colou. Restaria, então, o caminho do Parlamento.

Enquanto o debate acontece, continuo indo de porta em porta, renovando a esperança de convencer os que sobraram a um gesto de dignidade no fim da vida, ainda que seja para mostrar a “importância histórica” que tiveram no momento mais agudo do regime.

Fonte: Blog do Noblat

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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