Mulher negra: representatividade, visibilidade e pertencimento após a (des)abolição – Rosangela A. Hilário

A (des)abolição precisa ser contada a partir da perspectiva da população negra. Principalmente a partir do olhar e das ações da Mulher Negra, sua dororidade, solidão e processos de resistência.

Dororidade é conceito essencial para entender a trajetória da mulher preta e pobre. Ela se organiza sobre a dor e a solidariedade que une as mulheres pretas e promove a resistência para existência e inclusão.  A história e memória da  ancestralidade preta é também referência para o entendimento de como o povo preto constituiu suas lutas para o enfrentamento da situação vexatória e desumana da escravidão, que durou mais de quatrocentos anos, e não cessou com a assinatura da Lei Áurea.  O dia 14 de maio de 1888 nos trouxe uma “liberdade” assentada nas normas do colonialismo, que desumanizou as relações e deixou como herança, às pessoas de pele preta, a usurpação de sua cidadania, o desemprego, a falta de educação formal, o apagamento de sua história e a criminalização de sua fé e cultura.

Parafraseando Sueli Carneiro, para o povo preto sequestrado no continente africano, não houve “terra nostra”: houve um processo perverso que incluiu tortura, violação dos corpos, do direito à humanidade, aniquilamento, silenciamento e construção de uma autoimagem estereotipada, estruturada nas ausências em espaços de poder e decisão, e no excesso em espaços que ninguém quer viver – presídios, becos e favelas.

O “novo” status que emergiu da Lei Áurea não trouxe de volta o direito de escolha: as mulheres pretas continuaram nas cozinhas, nas faxinas, na exploração de seu trabalho e fora das escolas. O acesso à escola e à educação formal, de certa forma foi proibido, negado. Todo o regime que se sustenta no assujeitamento de pessoas precisa combater a democratização do ensino, criminalizar o conhecimento, ridicularizar a diferença e criar normas de controle social. Destruir a autoestima da mulher negra se constituiu na mais violenta e perversa forma de controle social: o fortalecimento da ideia de que ela não era o suficiente para uma existência plena faz com essa mulher se apequene para caber em uma vida que não escolheu.

Foi então preciso criar mecanismos para manter essas pessoas em situação de subalternidade. Parte do ordenamento jurídico brasileiro contribuiu para discriminar e criminalizar a memória, a história e a cultura negra: a primeira lei de educação (1837) proibiu as pessoas pretas de frequentarem a escola, ainda que fossem livres. Em 1850, a Lei de Terras as proibiu de ter terras, apesar do conhecimento sobre a tecnologia agrícola, detido há tempos pelos pretos africanos, ainda desconhecida pelos portugueses no século XVI. Com a expansão das fazendas de cana de açúcar e, por comodismo e desumanidade, a situação perdurou sistematicamente até a “abolição” em 1888. Era preciso impedir que o acesso à terra permitisse a emancipação de fato e, portanto, a não sujeição ao trabalho por qualquer pagamento.

As Leis que antecederam a Lei Áurea, portanto, deram legitimidade ao sistema de manutenção da escravidão, ainda que sob novas formas, descartando as “peças” que não correspondiam à “produtividade” esperada: a Lei do Ventre Livre mantinha as crianças pretas escravizadas com suas mães, primeiro para receber os poucos cuidados suficientes para que ficassem vivas, depois por lhes ser negada a cidadania por meio da escola, do trabalho remunerado, do reconhecimento de sua humanidade. Os senhores de engenho poderiam explorar essa criança/jovem até os 21 anos, como forma de pagamento pela casa e comida utilizada para sua sobrevivência. A Lei do Sexagenário desobrigava aos fazendeiros de continuar alimentando os poucos escravos que envelheciam pelas torturas, dureza da vida nas plantações e falta de esperança; aos sessentas anos (os que sobreviviam), sem trabalho, sem nenhum tipo de reparação, restava se resignarem para esperar a morte.

Por fim, a Lei da Vadiagem, de 1890 (apenas dois anos após a abolição), concedia ao Estado brasileiro o direito de encarcerar capoeiristas, músicos e quaisquer pessoas (pretas) que estivessem perambulando pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, após as 18h00. Da mesma maneira, os que estivessem portando objetos relativos à capoeira, segundo o Código Penal – Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890.

Em todo o processo que antecedeu e sucedeu a (des)abolição, as mulheres negras sempre foram tratadas como seres inanimados, objetificados para manter organizados, cuidados, limpos e alimentados pessoas e espaços em que ela só poderia estar na condição de subalterna, sem direitos. A invisibilidade era a condição para levar o sustento de suas famílias e manter a esperança de avançar um pouco a cada geração.

O informativo “Desigualdades Sociais por Cor e Raça no Brasil”, do ano de 2018, já sinalizava para o fato de que havia o triplo de pessoas negras entre os 10% mais pobres da população brasileira. A população negra, composta por pessoas pardas e pretas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, constitui a única maioria que se faz presente em todas as estatísticas negativas, estando praticamente ausente dos espaços de poder e decisão:  equivalente a aproximadamente 54% da população e 71% das pessoas assassinadas (sim: 71 em cada 100); 7 em cada dez mulheres assassinadas em função do gênero (feminicídio) são negras.

O mapa do encarceramento produzido pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2015, destacava ser formado por pessoas de pele escura 60,8% da população carcerária. Enfim, os negros ocupam os maiores índices de pobreza, os piores postos de trabalho, os bairros mais comprometidos do ponto de vista de equipamentos púbicos para a garantia de direitos, as escolas menos estruturadas para o desenvolvimento de saberes e competências básicas para ampliar suas potencialidades.

Para além da problemática racial, encontramos ainda a questão de gênero, em razão da cultura patriarcal:  mulheres negras, em que pese estarem na base na cadeia produtiva e se responsabilizarem no cuidado de um outro, não gozam do privilégio de ser homem, em uma sociedade patriarcal e machista (como os homens negros), e nem serem a outra do sujeito universal. Encontram-se em condições desiguais e injustas de desenvolver percursos que valorizem as capacidades individuais e articulem um projeto/intenções pessoais de desenvolvimento para além de cuidar de todo mundo e não ser cuidada por ninguém. Preterimento é palavra do dicionário criada para explicar as ausências em que vivem as mulheres pretas.

A somatização das opressões sistêmicas de classe, gênero e raça, conforme estudado por Angela Davis, torna-se cada vez mais evidente no Brasil. De acordo com o IPEA, na pesquisa “Retratos das Desigualdades de Gênero – 4° Edição”, cerca de 4,1 milhões de famílias são chefiadas por mulheres, e mulheres negras ocupam o terceiro lugar de quatro possíveis (homem branco, mulher branca, mulher negra e homem negro) no ranking educacional do país, ficando apenas na frente dos homens negros, mas ocupando a base da pirâmide de pessoas em situação de desemprego.

Por outro lado, os livros didáticos comprometidos em manter a colonialidade continuam apagando as histórias, memórias, protagonismo e ancestralidade do povo preto em geral, e da mulher preta em particular. Tereza de Benguela, a líder quilombola que criou a primeira escola fora da capital da província para que as crianças entendessem por qual motivo estavam no Quilombo, como chegaram até aquele espaço/lugar e para onde precisavam ir para alcançar a condição de cidadãos livres, criou o único parlamento paritário que se tem notícia no Brasil e serviu de referência de resiliência e encorajamento para muitas mulheres pretas e quilombolas. Porém, só passou a ser conhecida recentemente, por meio do historiadoras negras que desafiam o estabelecido e pautam novas versões da história a partir da escuta das mulheres pretas e periféricas.

Representatividade e visibilidade são conceitos que precisam ser compreendidos, para que não nos conformemos com fatos injustos e com poucas de nós alcançando espaços como porta-vozes de um sistema excludente e desigual: estar visível não é estar representada em espaços de decisões. Representar é estar em número suficiente para pautar políticas públicas que mudem as estatísticas e favoreçam a diminuição das assimetrias e ampliação das oportunidades. É ter bem mais do que 15,6% de professores negros nas Universidades Federais. Mulheres Pretas na academia, nos ministérios, na formulação de políticas públicas, no Supremo Tribunal Federal, nas faculdades de medicina, na magistratura, modificam a percepção desses espaços, porque agem no sentido de agregar para fortalecer, encorajar e avançar. A pauta de reconhecimento do racismo, em todas as manifestações, é o primeiro passo para avançar no combate que permitirá assunção a cidadania plena para as mulheres negras.

A ancestralidade foi, durante muito tempo (e ainda é), motivo de vergonha por não caber na “normalidade” de um povo que, sendo mestiço, se pretendia eurocêntrico. Os turbantes que agora coroam cabeças, já foram utilizados como forma de manter escondidos cabelos “ruins”, “estranhos”, “feios”; dos olhos de sinhazinhas cujo racismo se misturava ao temor por fenômenos e sentimentos que não sabiam explicar. Pessoas pretas não eram humanas. Eram “peças” de enriquecer e, no caso das mulheres, saciar os desejos libidinosos e obscuros dos senhores de engenho.

Refletindo sobre tudo isso, a Professora Vilma Piedade criou uma categoria para explicar o sentimento que une todas as mulheres negras em torno do processo de resistência para suas vivências: dororidade. A dor das ausências e partidas. A dor de ser preterida. No amor, no trabalho, no baile, na quadrilha de festa junina, nos mais variados espaços públicos. Na vida. A dor de carregar a responsabilidade de ser forte e manter a família. De não ser suficiente. De não ser padrão – e, portanto, não ser escolhida para as danças que importam na vida: do amor, do reconhecimento, das escolhas. O conceito criado por Vilma Piedade traduziu um sentimento que une e irmana todas as mulheres pretas, nos desafiando a refletir sobre o fenômeno. Seu entendimento é o primeiro (e necessário) passo para a completa representatividade, visibilidade e o pertencimento.

Nos querem de volta na cozinha, de pé e submissas. Mas nós combinamos resistir:  com altivez, conhecimento, com um livro de Lélia Gonzales em uma mão e a Constituição Federal na outra. No diálogo, afeto e no aquilombamento, para fazer a verdadeira abolição e promover direito de escolha.

Ponto e pronto!

Referências

www.cut.org.br. Acesso em 10 de maio de 2022

https://observatorio3setor.org. Acesso em 10.05.2022

https://www.gov.br/mdh/pt-br/noticias_seppir/- Acesso em 12 de maio de 2022

Para saber mais sobre a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, visite: https://mulherescientistas.org/

 

Rosangela A. Hilário, Professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de Rondônia e integrante do Comitê Executivo da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

 

Fonte: O Estado de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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