Minha visão do futuro da IA – Álvaro Machado Dias
Toda inteligência artificial existente é uma extensão do funcionamento do Perceptron, o neurônio artificial descrito na década de 1940 por Warren McCulloch e Walter Pitts. Este neurônio simulado, assim como as redes montadas sob sua inspiração (1957), não são cópias exatas do que encontramos no cérebro humano, onde as vias neurológicas são ativadas seletivamente e os neurotransmissores geram efeitos alheios à lógica digital.
As propriedades que aproximam as redes neurais artificiais das biológicas são relativamente genéricas e comuns a muitas espécies: a lógica conectiva, a existência de múltiplas unidades de processamento local (os neurônios) e, principalmente, a dinâmica de atribuição de pesos maiores/menores para as diferentes conexões como forma de registro contínuo das experiências.
Por analogia, muitos assumem que o mesmo ocorre no plano do aprendizado. Ou seja,que o “aprendizado de máquina” limita-se às formas comuns a humanos e outras espécies e, neste sentido, que está fadado a ser semelhante ao de mosca, lula e cachorro, os quais moldaram o conhecimento experimental nesta área.
A questão aqui é que, além de ser limitado em escopo, o aprendizado animal possui transmissão quase inexistente. Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, o Grande, foi excepcional. Seja pelo suposto medo da própria sombra, bravura, ou por comportamentos aprendidos, Bucéfalo ganhou notoriedade. Infelizmente, sua fama entre os equinos logo se esvaiu.
Com a gente é diferente. Pares e gerações sucessivas aproveitam entendimentos formalizados pelos outros para elevar seu acoplamento ao mundo. É claro que são dois passos para frente e um para trás. Aliás, muitas vezes, é o inverso, como no caso da escravidão e de todas as outras dinâmicas geradoras de vantagens concentradas às custas de prejuízos distribuídos.
Mas o balanço civilizatório funciona como juros compostos: basta que a tendência geral seja ligeiramente positiva (ou negativa) para que os efeitos de longo prazo sejam espantosos. Isso explica porque é muito melhor morar num apartamento em Sapopemba do que no palácio do rei francês Luís 16, no século 18, sem luz, esgoto e antibióticos.
Quando dizemos que algoritmos entram em ação errando muito, mas que aos poucos vão acertando mais e mais, estamos dizendo que começam a engatinhar nessa direção da transmissão cultural; afinal, orientam-se gradativamente pelas nossas práticas e aspirações.
Por mais que não possuam a flexibilidade de sujeitos imersos na cultura, exibem uma plasticidade ontogenética (ao longo de sua existência individual) muito maior do que a observada em qualquer outra espécie.
Algoritmos generativos estão se tornando cada vez mais aptos a utilizar os resultados das interações passadas para aumentar o sucesso das atuais. Suas memórias operacionais servem de legados locais, dando um senso de relevância personalizada a produções feitas da reorganização de legados de longo prazo, os quais chamamos de bases de dados ou conjuntos de treinamento.
Porém, sofrem de uma limitação fundamental no domínio da transmissão e adaptação cultural: eles são incapazes de modificar suas estratégias de processamento informacional para elevar ou redirecionar acoplamentos ao mundo, o que justamente fazemos rotineiramente.
Minha impressão é que, do ponto de vista dos livros de história do futuro, o que diferenciará qualitativamente a IA de todas as tecnologias anteriores será esta capacidade de alterar a si mesma em função da demanda imposta pelo real.
A grande novidade dos nossos dias é a transição da hegemonia dos algoritmos que geram taxas de risco e recomendações para os que geram conteúdo e conectividade socioafetiva. Essa é uma mudança muito importante, mas menor do que a que vai do comportamento fixo para o adaptativo, implodindo as barreiras entre os algoritmos existentes e os que surgirão depois.
O salto não é meramente técnico, mas de visão. A transição que antevejo é como a que nos levou da internet, ambiente de busca especializada, à Web, onde qualquer endereço digital pode ser encontrado com facilidade desde que assim queira o seu criador.
A guerra comercial pela hegemonia no mundo dos algoritmos generativos é como a guerra pelo domínio da web. No fundo, há algo de despropositado na mesma. A base de tudo são as informações produzidas por pessoas e empresas que, com algumas exceções geradas a posteriori, não consentiram com este uso.
Entre processos judiciais bilionários e o sobe-desce das ações na Nasdaq, o que vai ficando claro —pelo menos para mim— é que esta fase, que muito me lembra o Velho Oeste, tende a passar e a próxima tende a retomar alguns princípios da construção da web, especialmente a ideia de interoperabilidade algorítmica.
Isto se traduz em capacidade dos algoritmos se conversarem e assim poderem formar a rede em constante transformação que enxergo como fundamental para que possam se aproximar das dinâmicas de transmissão de legados e adaptação cultural.
Eu não estou dizendo que as IAs atuais sejam opacas a legados. Em 2018, a OpenAI lançou o GPT-1. No ano seguinte, lançou o GPT-2 e assim sucessivamente. As diferentes versões não foram construídas do zero. O cérebro ou “arquitetura” permanece o mesmo. Ele envolve dois grupos de técnicas, Transformer e Atenção. Dados de treinamento e recursos de aprendizado também são reutilizados, com acréscimos e ajustes que melhoram sucessivamente os resultados.
Reúso e exaptação (redirecionamento): estes são os princípios que regem a evolução de todas as tecnologias humanas. iPhone 1, 2, 3; GPT-1, 2, 3. O paradigma aqui é o da ferramenta. As IAs, assim como os utensílios de cozinha, ou os telefones celulares, fazem o que determinamos. Isto inclui a sua própria evolução, que é levada à frente pelo fabricante para resolver problemas que lhe parecem comercialmente interessantes.
Atente aos desafios: nós somos incapazes de enxergar a transformação cultural de maneira sistêmica, tanto por sermos parte, quanto por sua complexidade local e global. Do mais, nem todos os problemas humanos são comercialmente interessantes.
Assumir que podemos otimizar o processo de adaptação continuada de uma tecnologia cujo propósito é se moldar adaptativamente à cultura é pura prepotência e ingenuidade. Lembra a intuição do sujeito do século 19 que tinha certeza de que a evolução por seleção natural estava errada, dado que a natureza, cega e selvagem, jamais poderia ser capaz de determinar a forma ideal dos organismos. Só Deus, ou ele mesmo, para criar a beleza das flores.
O grande passo no curso de desenvolvimento da IA será a superação do status de ferramenta, o que deverá vir pelo surgimento de protocolos globais, livres como a World Wide Web, para a geração de sistemas de múltiplos algoritmos —tantos quanto disponibilizarem os seus inventores.
O resultado será o surgimento da “verdadeira IA”, uma enorme camada de abstração e interoperabilidade (conectores), que transcenderá a resolução de tarefas específicas e que terá tantos donos quanto a Web: milhões e, ao mesmo tempo, nenhum.
O consenso futuro, se esta visão se materializar, é que a nova maneira de conceber a relação entre algoritmos e humanos foi responsável pela elevação da inteligência artificial ao status de pivô da transformação cultural.
Um aspecto fundamental desta transformação é que a IA poderá atuar como apoio decisório para os problemas verdadeiramente complexos que enfrentamos, coisa que não acontece hoje em dia, a despeito das aparências. Veja, grande parte das nossas relações com o mundo pode ser concebida como jogos. Elas têm um momento de início, envolvem interesses e tornam as partes menos ou mais satisfeitas do que estavam antes da interação.
As atuações das IAs também podem ser vistas dessa forma. Dizer que um algoritmo atingiu seu propósito é sinônimo de afirmar que ele cumpriu adequadamente seu papel em um jogo com começo, meio e fim. Ao final, o usuário pode lhe atribuir estrelinhas, como faz com outra ferramenta qualquer.
Agora, imagine que, em vez de um jogo com começo, meio e fim, o objetivo seja “aumentar a prosperidade global” ou “reduzir o sofrimento de quem vive com doenças mentais”. A ideia, nesses casos, é que as inúmeras realizações que levam à prosperidade global, ou à mitigação do sofrimento psiquiátrico, sejam identificadas e que estratégias para atingi-las sejam definidas.
Essas tarefas não têm fim, ao passo que os caminhos para a sua realização são inumeráveis. Por isso, esses jogos são chamados de infinitos, em contraste com os anteriores, chamados de finitos.
Desempenhos satisfatórios em jogos infinitos dependem de adaptação continuada. Não se trata apenas de aprender a manipular novas informações; é preciso atualizar a própria maneira de entender as coisas conforme o zeigeist (espírito do tempo) muda. Minha visão sobre a ruptura mais radical que a inteligência artificial, tal como descrita acima, deverá introduzir está na habilidade de conduzir jogos infinitos de forma superior aos humanos.
Eu não estou dizendo que isso será necessariamente bom ou ruim, apenas que me parece representar aquele ponto do desenvolvimento sociocultural em que as coisas se assentam por um bom tempo, como vem sendo o caso com o capitalismo industrial e crescentemente urbano, em unidades conhecidas como Estados Nacionais, desde que a Primeira Guerra Mundial reduziu grandes impérios a poeira; e a eletricidade, o petróleo e a linha de montagem criaram as bases procedurais para a geração de valor em escala.
Esqueça a ideia de que o ponto de chegada da IA é a capacidade de realizar eficientemente tarefas típicas de empregos e outras funções sociais bem definidas. Para além disso tudo está o fato de que a vida em si é um jogo infinito, que por definição não conseguimos compreender antes que se encerre.
Em última análise, a inteligência artificial tende a evoluir em direção ao papel de otimizador existencial. Uma boa maneira de chamá-la é “máquina de progresso”, que é mais ou menos o que a transmissão cultural faz pela contínua adaptação de legados, exceto quando dá um passo para frente e dois para trás, risco que igualmente deve ser potencializado, ainda que nada indique que este ecossistema de tecnologias venha a adquirir consciência ou intencionalidade.
Álvaro Machado Dias é neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind
Fonte: Folha de São Paulo