Os salários de Braga Netto e a promessa de Mourão – Marcelo Godoy
Caro leitor,
“Só na liberdade se criam os valores estáveis para o desenvolvimento e a Justiça social.” O autor da frase foi um dos sobreviventes da revolta que inaugurou há cem anos o tenentismo. Era 5 de julho de 1922, quando o futuro patrono da Aeronáutica saiu com seu rifle ao lado de seus companheiros para enfrentar os legalistas que os cercavam em Copacabana. Eduardo Gomes sobreviveu à fuzilaria. Acabou preso. O brigadeiro teve sua história ligada até ao fim àqueles oficiais que incendiaram a República pensando salvar a Nação, submetida à corrupção das oligarquias.
O brigadeiro não dava entrevistas. Mas lia os jornais meticulosamente. Certa vez, surpreendeu-se com um proclama na imprensa oficial. Anunciava-se o casamento de uma sobrinha sua, Maria Celina Saboia Gomes, morta havia décadas. Quis saber o que era aquilo e chamou a polícia. Descobriu-se que o casamento fora a forma usada por dois dirigentes clandestinos do PCB – José Salles e Marly Vianna – para obter documentos quentes. Não faziam ideia de quem era aquela identidade. Sabiam apenas se tratar de pessoa morta há tempo. Os envolvidos acabaram presos; exceto Salles e Marly.
Gomes era católico e tão fervoroso que foi encontrar o papa João Paulo II quando este esteve no Brasil pela primeira vez, em 1980. Recebeu do pontífice um beijo em sua cabeleira branca. O brigadeiro simbolizava a austeridade militar, aquela em que a honra se impõe à legalidade. O patrono da Aeronáutica dividia a metade do salário de marechal do ar com os pobres de Petrópolis, cidade onde nasceu.
A história de Eduardo Gomes é coisa do passado em Brasília. Mas ressurgiu dez meses atrás quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, permitiu aos militares o chamado teto duplex: em vez da regra do teto de salários, que impedia o acúmulo de vencimentos além dos salário do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O militar que vai para a reserva não se aposenta. Ele mantém o vínculo e pode ser revertido para o serviço ativo antes de ser reformado. Por isso, considerava-se o salário de ministro (civil) uma segunda remuneração. Somava-se o vencimento militar e o civil e o que ultrapassava o teto era retido.
Com a decisão de Guedes, passou-se a considerar a remuneração na reserva como aposentadoria. O teto então incidiria não mais sobre a soma, mas sobre cada um dos vencimentos – o civil e o militar – separadamente, permitindo que os salários do então ministro Walter Braga Netto e do vice-presidente Hamilton Mourão ultrapassassem o teto de R$ 39,2 mil e chegassem a mais de R$ 60 mil brutos. Quando a regra mudou, Mourão disse que era contra e afirmou que estudava doar o extra que receberia para o partido ou para uma instituição. Resumiu assim o problema: “É legal, mas não é ético”.
As palavras do vice-presidente faziam lembrar o exemplo do brigadeiro. Mas como ensinou no século 19 um pensador alemão muito contestado entre os amigos do vice-presidente: a prática é o único critério da verdade. Sendo assim, o que fez Mourão desde então? A coluna perguntou à Vice-Presidência há cinco dias qual o destino do dinheiro a mais recebido por Mourão desde junho de 2021. Doou a alguma instituição? Entregou os recursos ao partido? Até a noite de ontem não havia resposta.
Braga Netto, que deve substituir Mourão como vice na futura chapa de Jair de Bolsonaro, também teve os vencimentos aumentados. Mas não fez nenhuma declaração discordando da medida. Não considerou imoral receber acima do teto o salário de ministro da Defesa de R$ 30.934,70. Como general da reserva, acumulava mais R$ 32.734,85. Braga Netto silenciou sobre o caso. E quando deixou o ministério para poder se candidatar às eleições de 2022, foi agraciado com um cargo de assessor da Presidência, que ele poderá ocupar por mais três meses, recebendo salário de R$ 16.944,90. É que os assessores só precisam deixar seus cargos 90 dias antes das eleições.
Braga Netto e Mourão deveriam explicar o que consideram ser o moral e o legal. O cientista político Oliveiros Ferreira ensinava que entre os militares esse dilema não existe, pois o que os inspira é a honra. Se algo é imoral, nada feito. Foi para defender a honra e provar que não fora, como membro do Estado Maior do Exército, o autor do Plano Cohen, em 1937, que o então coronel Olímpio Mourão Filho decidiu pedir que fosse submetido a um Conselho de Justificação do Exército. Tudo para mostrar que não faltara com a verdade e, assim, não era indigno do oficialato.
“Na Força Armada não há essa distinção entre o ‘legal’ e o ‘moral’. A conduta ajusta-se ou não aos padrões militares”, escreveu Oliveiros. Alguém pode pensar que tudo é coisa do passado, que os tempos mudaram. Ou que o brigadeiro sempre foi uma exceção. Pedro Aurélio de Góis Monteiro sabia disso. Mandou em 10 de novembro de 1937 cercar o regimento de aviação, comandado por Eduardo Gomes. Desconfiava de que não poderia contar com o oficial para o golpe do Estado Novo. É preciso entender o contexto dos atores desta história. O brigadeiro candidatou-se duas vezes à Presidência. Perdeu em ambas. Não abriu mão do ethos militar. Mourão e Braga Netto deixaram os quartéis e entraram para a política. Os marcos referenciais são outros. E os fatos mostram que os dois se adaptaram ao novo ambiente.
Fonte: O Estado de São Paulo