Menino felino

Minha sogra ensinou o filho a andar em cima dos telhados. Eles moravam no primeiro andar e ele, com sua leveza infantil, foi incumbido de caminhar entre as telhas que fi cavam abaixo da janela para resgatar roupas e prendedores que insistiam em cair. Como um gatinho, ele frequentava clandestinamente os telhados. Seu observatório predileto dava para a lavanderia de um hotel vizinho, onde escutava a conversa das funcionárias.

Qual é o homem que não gostaria de saber o que as mulheres falam entre si na intimidade? Imagine para um garoto, com tudo ainda por saber, o quanto essas aulas sobre a vida vinham a calhar. Certo dia, entregue à sua sorrateira espionagem, escutou a conversa de duas lavadeiras que falavam mal de uma terceira mulher. Uma sirigaita imperdoável, ladra do marido de uma amiga comum. “Também – observou uma delas – pessoas de olhos verdes não são boa gente!”

Naquele momento Mário descobriu algo que jamais havia observado: os olhos tinham cores diferentes, e mais, isso informava sobre a natureza de seus portadores. De posse  dessa nova bússola para classificar o mundo, investigou os olhos dos membros da sua família. Para seu espanto constatou que seus pais e irmãos tinham todos olhos verdes. Ele, de olhos azuis, estava cercado de pessoas malévolas! Bom, com o tempo tudo se relativiza e ele pôde tranquilizar-se quanto à respeitabilidade dos seus familiares, apesar daquele mau indício. Além disso, as pessoas com olhos verdes, como eu, tornaram-se seu perigoso e atraente mistério e certamente me beneficiei disso. Quando buscamos um amor pensamos que a compatibilidade de gostos, pensamentos e parâmetros éticos tem uma influência importante. Até tem. Mas não há quem não estranhe a falta de lógica visível na maior parte das paixões.

Tentamos atribuir as compulsões amorosas às características físicas, que mudam conforme a época, e a uma tal de “química”, que parece ser o elemento-surpresa, o mais inapreensível. Nosso modo de amar, assim como o sentimento de que julgamos ser merecedores, é resultado de uma colcha de retalhos formada a  partir de pequenas histórias, aparentemente aleatórias, mas que assumem grandes significados. A partir das nossas vivências construímos um ideal de gênero e traçamos os contornos daquilo que será um objeto de desejo. Somos influenciados pelo que nossos pais foram, gostariam de ter sido, ou mesmo por tudo o que eles condenam.

Pessoas de olhos verdes, por exemplo, para o menino felino, apresentaram-se como irresistíveis, mesmo que moralmente questionáveis. Uma experiência no divã ajuda a relativizar essas determinações ao tentar mergulhar nos pensamentos que formam o rio subterrâneo que irriga nossas várias escolhas amorosas. Sei não, talvez minha própria história de amor tenha dívidas com prendedores de roupas, telhado e lavadeiras. Quanto a mim, porque coloquei os olhos nele… Bom, isso é outra história que talvez tenha a ver com seus olhos azuis.

DIANA CORSO é autora do livro Tomo Conta do Mundo – Conficções de uma Psicanalista.

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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