Juan Gabriel Vásquez discute sua ficção, que evita alegorias do realismo mágico

JGV ESCRITORAo inventar um país num dos seus livros publicados no Brasil, História Secreta de Costaguana, que toma emprestado o território criado por Joseph Conrad em Nostromo, o colombiano Juan Gabriel Vásquez não estava transformando a Colômbia em ficção, mas tentando entender a caótica e contraditória História de sua terra natal. Ele volta a ela em seu premiado O Ruído das Coisas ao Cair, que recebeu o prêmio Alfaguara de melhor romance em 2011 e é lançado agora pela editora que empresta seu nome a ele.

Nascido em 1973, elogiado pelo Nobel peruano Mario Vargas Llosa, e outros escritores de peso, como o espanhol Enrique Vila-Matas, Juan Gabriel Vásquez escreveu O Ruído das Coisas ao Cair fora da Colômbia – ele viveu em Barcelona até o ano passado e volta agora a Bogotá não se sabe se por muito tempo. A razão é simples, como conta na entrevista exclusiva ao Sabático: a vida de expatriado garantiu o distanciamento necessário para entender a realidade colombiana e desvendar a ligação histórica do país com o narcotráfico.

No novo livro, o tema é justamente a amizade de um jovem professor de Bogotá, Antonio Yammara, com um ex-presidiário, Ricardo Laverde, que conhece num bilhar. Ligado ao tráfico de drogas, o último é assassinado. Investigando o crime por conta própria, Yammara descobre mais coisas sobre o passado do amigo morto do que talvez desejasse. Nem alegoria, nem ensaio sociológico, O Ruído das Coisas ao Cair, segundo Vásquez, é ficção pura, desvinculada do realismo mágico do conterrâneo Gabriel García Márquez e próxima dos esforços dos americanos Philip Roth e Don DeLillo para entender o significado da História. A seguir, Vásquez fala dessas e de outras boas influências, como Saul Bellow, escritor nascido no Canadá e que viveu nos EUA, e afinidades eletivas, caso de Alan Pauls, argentino, e Javier Cercas, espanhol.

O hipopótamo do zoológico do narcotraficante Pablo Escobar Gaviria, que cai morto e marca o início de seu romance, representa uma espécie de metáfora da vida em Bogotá nos anos 1980, uma vida associada ao narcotráfico, como você já observou. Acredita que tenha sido criado um gênero literário, o “narcorromance”, com livros como os de Fernando Vallejo, Laura Restrepo e agora O Ruído das Coisas ao Cair? Que tipo de identificação tem você com Vallejo e Restrepo?

Deixemos claro: não acredito que esses sejam “narcorromances”. Laura Restrepo e Fernando Vallejo escreveram alguns dos romances mais importantes das últimas décadas na Colômbia: A Virgem dos Sicários e Leopardo ao Sol. Cada um a sua maneira, definiram uma certa visão a respeito do narcotráfico e suas influências, ocultas ou aparentes, na vida colombiana. Não são narcorromances: são romances inclassificáveis. Ampliaram nossa compreensão do fenômeno e sua relação com a vida privada – e esta é uma das coisas que quis fazer. Se obtive êxito, se meu romance amplia nosso entendimento sobre o narcotráfico e seu impacto na vida íntima das pessoas, se conquistou terrenos de nossa experiência antes não explorados, então não me preocupa muito a pergunta sobre os gêneros. Meu romance se sentiria honrado de estar numa família em que estão Restrepo e Vallejo.

Mas numa entrevista recente você disse que “o narcorromance mais interessante flerta com o romance noir”. Como é escrever sobre a Colômbia vivendo no exterior? Que relação tem com o romance noir?

Disse muitas vezes que foi a distância, a vida de expatriado, que me permitiu escrever sobre meu país. Foram necessários muitos anos de Europa para compreender que o distanciamento e a relação difícil com meu país não eram obstáculos para escrever sobre ele, senão as melhores razões. Minha relação com o romance noir é ocasional e distante: só me interessam os romances que leio sem saber que são do gênero noir, ou podendo esquecê-lo. Nunca me interessei por subgêneros, muito menos pelas regras que impõem: ao se trabalhar dentro de um subgênero, o que mais interessa é romper ou duplicar essas regras.

Embora ambos tratem da problemática colombiana, me parece que, frente à complexidade de Os Informantes, a transparência de O Ruído das Coisas ao Cair presta ao leitor um relato mais completo sobre a sociedade colombiana. Recriar como nasceu o negócio do narcotráfico explica como funciona o poder na Colômbia?

Não uso o verbo “explicar” relacionado a meus romances. Prefiro “explorar”. Creio que olhar para o passado, fazer perguntas sobre o nascimento desse negócio, comparar esse nascimento com o que sucedeu depois, não serve para entender melhor como funciona o poder. Mas não só o poder e não só a Colômbia. Não gostaria que meu romance fosse lido como sociologia ou jornalismo: tratei de fazer perguntas que possam ser pertinentes em outras sociedades, perguntas sobre a ambição, sobre as más consequências das boas intenções, sobre a maneira como a História nos enreda e nos condiciona sem nos darmos conta, sobre o medo, sobre as relações privadas quando as submetemos a certas pressões…

Os Informantes aborda a vida daqueles que durante a Segunda Guerra delataram às autoridades norte-americanas alemães radicados na Colômbia supostamente simpatizantes dos nazistas. O Ruído das Coisas ao Cair mostra que a guerra não acabou na Colômbia, que a intolerância contra o diferente está infiltrada na violência dos cartéis. Os Informantes serve de prólogo para entender episódios violentos da História colombiana?

Não descreveria a violência dos cartéis da droga como “intolerância contra o diferente”: era, simplesmente, uma gigantesca estrutura criminosa projetada para proteger um negócio muito lucrativo. Mas, sim, me parece justo ver em Os Informantes um prólogo indireto do que viria depois: a violência que, no século passado, deixou 300 mil mortos em dez anos, e esse conflito que ainda nos sufoca, cujos atores – guerrilha, paramilitarismo – se alimentam do negócio do narcotráfico. Não creio que exista uma relação causal entre esses fenômenos, mas uma relação simbólica. E para isto servem os romances: para pensar nossa realidade com ferramentas que não são literais, mas metafóricas.

Para retratar a realidade de Bogotá, urbana e contemporânea, suas ferramentas não vieram de García Marquez e da tradição literária associada, de modo geral, à Colômbia, mas de romancistas como Philip Roth, Saul Bellow e Thomas Pynchon. Poderia explicar essa influência norte-americana?

A leitura de certos autores norte-americanos foi decisiva para mim. O que Philip Roth e Don DeLillo fizeram com a História dos EUA – e sua relação com a pequena história, a história dos indivíduos – me deu lições importantíssimas sobre o tipo de romance que queria escrever. Bellow me ensinou a dar corpo narrativo às ideias, a pensar na ficção, a olhar com atenção ao mundo e ouvir a música de seus detalhes. Há muitos outros escritores norte-americanos aos quais me aproximei em busca de respostas, com uma devoção quase religiosa. Penso nos mais evidentes, como Fitzgerald, Hemingway, Faulkner, mas também em outros menos evidentes, como Updike e Doctorow. Sim, é uma literatura que me ensinou muito, e eu tratei de aprender com ela.

Você tem vínculos claros com escritores clássicos como Conrad. Como é sua relação com autores latinos e espanhóis?

Nós, escritores, formamos famílias genéticas, ou, para dizer de outro modo, grupos de afinidades eletivas. Javier Cercas na Espanha e Alan Pauls na Argentina são dois autores com os quais compartilho a mesma ideia do que a ficção pode fazer, por que vale a pena praticá-la, dos lugares a que nos pode conduzir. São autores de romances que leio e admiro e, além de tudo, grandes leitores. Em seus livros, os acontecimentos do mundo exterior são observados com tanto interesse como um ponto ou uma vírgula ou a localização de algo esdrúxulo numa frase. São autores cuja ética literária compartilho.

O Ruído das Coisas ao Cair tem uma densidade alegórica: mostra como cai um país dominado pela droga. Como você vê o futuro da Colômbia?

Sou muito pessimista: a História recente da Colômbia é uma história de violências diversas e, durante os últimos 40 anos, essas violências têm usado o mesmo combustível, o narcotráfico. Ou melhor, foram financiadas pela droga. O tráfico de drogas não só está por trás da época mais dura do terrorismo que vivemos na América Latina. Ele financiou todos os lados do atual conflito. É incalculável, além disso, a deterioração moral e social que causou. E nada disso tem solução possível ou viável se não se legaliza a droga, único mecanismo capaz de acabar com o poder das máfias e sua capacidade corruptora. Mas, até agora, os governos do mundo têm sido consistentemente hipócritas e pusilânimes com o tema.

Que leitura você faz do que se passa na literatura contemporânea?

Não creio que seja possível fazer tal leitura, mas acredito que há mais desconfiança que nunca na ficção. Creio que a sociedade contemporânea deixou de confiar na ficção como uma maneira única e insubstituível de explorar nosso mundo e nossa condição humana. Creio que os modos de pensamento que a ficção propõe – modos ambíguos, baseados no teimoso questionamento de nossa realidade, na vontade de explorar nossos lados mais obscuros sem fechar os olhos – não são muito populares no presente. A ficção que não se resigna a apaziguar o leitor, mas inquietá-lo, que se nega a enganá-lo e busca, ao contrário, dizer as verdades mais dolorosas, essa ficção está desaparecendo porque já não interessa à grande massa dos leitores, cuja consciência foi sequestrada pelo conformismo e pela frivolidade. Nada que, obviamente, seja uma razão para não continuar a escrever.

Fonte: O Estado de São Paulo

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

Menu de Topo