III – Quando a rádio era “emissora” e as ondas eram “médias” – 1974-1979 – José Jorge Andrade Damasceno

O “trabalho da memória” está sempre em consonância com as escolhas realizadas por quem se dispõe a lembrar e, sobretudo, quando o que é lembrado sai do silêncio dos anos e salta no presente de quem lembra. Este lembrar, saliente-se, é marcado pelas escolhas de quem lembra e pelas ressignificações do presente, o que equivale dizer que, a memória trazida por quem lembra, o é, de acordo com os escavares das camadas do passado que se quer lembrar, não deixando de observar o esquecimento como sendo parte do rememorar que é trazido à superfície, mediante a “reconstrução” de um passado cujo presente se apresenta como elemento subjacente ao lembrado. Assim é que o “esquecimento” aparece como o fio por onde se pretende conduzir o “rememorar”, uma vez que o esquecer é parte intrínseca do esforço de lembrar.

A Rádio Emissora de Alagoinhas é o tipo de memória que sempre vem a lume, quando se quer falar de um tempo em que o rádio era quase o único meio de comunicação popular, na medida em que se tornava a companhia daqueles que permaneciam em casa, grande parte do tempo, em um “tempo” em que as oportunidades de entreter-se era muitíssimas escassas. A audição de músicas, possibilitadas pelas emissões radiofônicas, portanto, era o que mais facilmente chegaria a grande parte das residências dos alagoinhenses. Afinal, os toca-discos – fossem portáteis ou móveis instalados em algum espaço da casa – eram caros e, fazia-se necessária uma constante renovação dos acervos de discos, o que encareceria um pouco mais o processo de atualização deles, uma vez que, já naquela época, era grande o volume de  gravações e ainda pouco organizada a distribuição discográfica no Brasil dos anos 1970, dificultando o acompanhamento daquela já larga e variada produção, com o fito de adquirir pessoalmente as muitas opções que eram apresentadas ao consumidor fonográfico.

Neste sentido, era a audição de rádio que permitia o contato com um maior número de, diga-se, lançamentos. No caso da Rádio Emissora de Alagoinhas, parte de seus ouvintes acreditava que assim era: as músicas que lhes chegava aos ouvidos através da sua programação, eram aquelas que estariam em evidência no instante mesmo que eram levadas ao ar chegavam aos seus receptores. Com o passar do tempo e com a inclusão de outras emissoras radiofônicas ao escopo de sua “arte de ouvir rádio”, constatou-se que as coisas não eram bem assim. Ficava cada vez mais nítido o descompasso entre a produção discográfica e a composição do acervo da discoteca da rádio Emissora de Alagoinhas.

O distanciamento entre o que se ouvia nas emissoras de Salvador, por exemplo, e o que era ouvido por cá, foi ficando mais evidente, com a posterior percepção de que, grande parte dos discos tocados na Rádio Emissora, sobretudo aqueles que estavam mais em evidência no momento de sua execução, pertencia aos seus apresentadores. Não eram raras as vezes que “pedidos musicais” não podiam ser atendidos, porque a “peça” em causa não fazia parte da discoteca da emissora. Também não eram raras as vezes em que os “pedidos musicais” envolvendo gravações mais pretéritas, eram mais facilmente encontráveis, do que outras que estavam no mercado há pouco tempo.

Neste sentido, é possível arriscar aqui uma premissa de que há uma relação estreita entre a emissora e os seus ouvintes, sobretudo aqueles que ouviam apenas ela, no sentido de uma espécie de “manipulação de um determinado público”, com o objetivo de que ele seja forjado de acordo com as possibilidades e limites da programação da rádio. Assim, é muito provável que o “programador” induzia os seus ouvintes no sentido de “ter” um determinado “gosto musical”, sempre de acordo com o material que ele dispunha na “discoteca” da emissora ou no seu acervo pessoal. É, igualmente claro que, o ouvinte que não possuía contato com a programação de outras emissoras, desconhecia a existência de outras músicas, que não aquelas tocadas na única rádio de sua audição, a Emissora de Alagoinhas.

Isto ficou bem evidenciado, pelo fato de que por um grande período de tempo, a Rádio Emissora de Alagoinhas fez uso de programas “enlatados”, que eram produzidos quase sempre no Rio de Janeiro ou em São Paulo e eram distribuídos para todo o Brasil. Tais programas podiam ser “novelas radiofonizadas”, ou outras adaptações no campo da dramaturgia, que eram patrocinados por marcas como “Gessy Lever”, bem como por produtos mais específicos, como era o caso das lavadoras, dos refrigeradores e dos fogões “Frigidaire”; ou poderiam ser os musicais que trariam aos ouvintes os mais recentes “sucessos” do disco.

Se apresentam bem nítidos na memória deste escrevente, programas como o “Nissei Musical”, apresentado pela voz inconfundível de Oliveira Neto, bem como  um outro, o programa patrocinado por um dos produtos de higiene bucal, “Música e Alegria Kolynos”, apresentado por Estevam Sangirardi, gravado nos estúdios da gravadora Odeon e, reafirme-se, distribuído para inúmeras emissoras de todo o País. Mesmo assim, certamente havia um grande hiato entre a produção de tais programas e o momento em que eram distribuídos e executados nas diversas emissoras das várias cidades brasileiras, uma vez que a sua veiculação estava sujeita a uma logística envolvendo grande variedade de elementos, caminhos e descaminhos a serem percorridos, até chegarem ao seu destino final: às rádios e aos seus ouvintes.

Este panorama muda substantivamente, a partir da chegada de dois novos apresentadores de programação musical, cujo perfil era mais aproximado do público composto por aqueles ouvintes que estavam na faixa dos quinze aos  vinte e cinco, trinta anos, cognominados de “jovens”. Os apresentadores em questão, trouxeram um formato de programação já bem avaliado em outras emissoras do Brasil, sobretudo, aquelas estabelecidas no eixo Rio/São Paulo, além das suas congêneres de Salvador.

Está se falando de locutores que aparecem desenvolvendo novos programas na rádio Emissora de Alagoinhas entre 1978 e 1979, trazendo novidades no modo de conduzir os programas, abrindo para a participação dos ouvintes através do telefone, que aliás, era uma das grandes novidades da cidade àquela época, uma vez que a urbe alagoinhense fora alcançada pela expansão dos serviços telefônicos propiciados pela Telebahia. Além de mudanças que permitiam a realização de chamadas interurbanas, também colocava à disposição dos cidadãos, um grande número de telefones públicos, conhecidos popularmente como “orelhões”, com uma distribuição pelos bairros adjacentes aos centro da cidade, o que permitira a implantação da novidade trazidas para o campo da participação dos ouvintes, agora de forma direta, na programação musical da emissora.

Conforme entende este escrevinhador, este foi o grande legado dos locutores e “disk jockey”  Jorge Oliveira e Aloísio Santana, visto que a passagem daqueles dois apresentadores pela Rádio Emissora de Alagoinhas indicava uma mudança substantiva no modo de fazer rádio com a interação direta com a audiência, que deixava de ser passiva, ainda que em parte, para se tornar mais próxima dos seus programadores. Grande parte das vezes, o trabalho deles no sentido de renovar o acervo musical da programação, só era possível mediante os seus investimentos pessoais na compra de discos, sobretudo, aqueles de lançamento mais recentes e, parece que era o caso de Aloísio Santana, a posse de grande variedade de discos de todos “os tempos”, talvez em maior quantidade do que os existentes na própria discoteca da emissora.

Este escrevedor gostaria de construir um arrazoado mais demorado para tratar de Jorge Oliveira e Aloísio Santana, no que tange ao legado que ambos deixaram na radiofonia de Alagoinhas, uma vez que, embora tivessem tido grande êxito em levantar a audiência da Rádio Emissora de Alagoinhas, hoje são figuras relegadas ao completo esquecimento, exceto na memória daqueles que os ouviram e, daqueles que privaram do contato e/ou do convívio pessoal/profissional com eles.

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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