Há 150 anos, 1º censo nacional e único do império contou livres e escravizados

Há 150 anos o Brasil começava a fazer seu primeiro censo demográfico de abrangência nacional, o único levantamento que contabilizou a população escravizada no país. O projeto, que visava traçar um perfil fiel da nação, expos em números um país analfabeto, católico e de maioria negra e masculina. Foram contados mais de 1,5 milhão de escravizados.

O dia 1º de agosto marca apenas o início do processo porque tratou-se de um longo caminho. Algumas províncias atrasaram o recenseamento em até dois anos diante da inexperiência em uma operação tão grande e da vastidão territorial de um país basicamente rural, que tinha construído suas primeiras ferrovias havia pouco tempo.

Foram os casos de São Paulo (janeiro de 1874), Minas Gerais (agosto de 1873), Mato Grosso (outubro de 1872) e Goiás (junho de 1873).

Foi preciso também lidar com fichas de família —os questionários da época— que se extraviavam ou simplesmente não eram entregues a tempo para a apuração.

Além disso, os responsáveis por preencher as fichas eram os chefes de famílias de um Brasil majoritariamente iletrado, o que pode ter gerado uma série de problemas, como erros de preenchimento —o próprio censo contabilizou 8,37 milhões de analfabetos, cerca de 84% da população total naquele momento.

“Mas de maneira geral foi um censo muito bom, e realizado com tranquilidade. Para se ter ideia, o de 1872 foi apurado mais rápido que todos os outros censos brasileiros até o de 1940”, lembra Tarcísio Rodrigues Botelho, professor do Departamento de História da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

A execução relativamente sólida deste censo, porém, foi precedida de um histórico de tentativas de instituir a pesquisa nacional 20 anos antes.

A lei que autoriza a realização do primeiro censo e que institui também o registro civil é de 1850, aprovada em um contexto de hegemonia do Partido Conservador e de relativa estabilidade após o conturbado período regencial (1831-1840), segundo Botelho.

Revoltas populares em algumas províncias, porém, fizeram com que ambos fossem suspensos. Na década seguinte, a Guerra do Paraguai foi mais um obstáculo —e evidenciou as lacunas de informações estatísticas e cartográficas sobre o Brasil.

Depois de um recenseamento teste na corte, em 1870, o censo nacional enfim foi realizado em 1872 e contou 9.930.378 pessoas no país (10.110.990 após ajustes), das quais 8,42 milhões eram livres e 1,51 milhão eram escravizadas, em um momento em que a escravidão já se mostrava em declínio do ponto de vista político, sob pressões internas e externas, e mesmo demográfico.

Eram exemplos disso a lei Eusébio de Queirós, como ficou conhecido o texto de 1850 que proibiu de vez o tráfico transatlântico de escravizados e, em 1871, a Lei do Ventre Livre, que tratava como livre qualquer filho de escravizado nascido a partir daquele momento.

“A ideia da elite política do Império é que a escravidão acabaria gradativamente, e os dados do censo dariam uma ideia de quanto tempo levaria para esse fim. Claro que sabemos que não foi isso que aconteceu”, diz Maísa Faleiros da Cunha, coordenadora do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

As listas de família, preenchidas pelos chefes de domicílio —multados caso não o fizessem—, pediam sobre cada ocupante daquele local nome, relação com o chefe (parentesco, escravos e agregados), sexo, idade, cor, estado civil, naturalidade, nacionalidade, profissão, religião (católicos ou acatólicos), e se sabia ler e escrever. Uma coluna final de observações pedia para que fosse declarado local de domicílio de hóspedes, onde se achavam os ausentes daquela casa e eventuais condições de saúde.

A informação sobre raça/cor tinha quatro divisões: branca, parda, preta ou cabocla, que compreendia os indígenas. Brancos eram 38,1% da população total, e os indígenas eram 3,9%. Foram contadas 3,8 milhões de pessoas pardas (38,3% do total), 470 mil delas escravizadas, além de 1,96 milhão de pessoas pretas (19,7% do total), 1,04 milhões delas cativas.

Somados, pretos e pardos eram 58% da população, resultado que dava números à óbvia e visível composição racial de um país que, poucos anos depois, veria sua elite intelectual mergulhar em teorias racistas que atribuíam à profunda mestiçagem os atrasos do desenvolvimento nacional.

Vale dizer que a categoria de cor era dividida de forma diferente nos vários levantamentos regionais anteriores do Império e coloniais, e mudou também em todos os censos nacionais posteriores —quando não foi retirada do questionário, casos de 1900, 1920 e 1970.

O procedimento de coleta das informações no censo de 1872, aliás, difere em quase tudo de como é feito hoje pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a começar pela divisão administrativa do território.

Eram 20 províncias (além do município neutro da corte) divididas em 641 municípios, que, por sua vez, continham 1.473 paróquias, segundo pesquisa do Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional), da UFMG, que digitalizou e fez correções dos dados levantados –havia inconsistências nas tabelas dos resultados e ausência de apuração em algumas freguesias.

Cada paróquia tinha uma comissão censitária de cinco cidadãos responsáveis por organizar a execução do censo naquele local, além de fiscalizar o trabalho de agentes censitários, cuja função principal era entregar as listas de família nos domicílios e recolhê-las alguns dias depois.

Organizados os boletins, eles eram entregues a uma comissão provincial e depois submetidos à Diretoria Geral de Estatística (DGE), órgão criado em 1871 incumbido de apurar as informações e publicar os relatórios e resultados finais.

As listas preenchidas, no entanto, fontes originais das informações coletadas, perderam-se com o tempo —poucos exemplares foram encontrados por pesquisas recentes. A riqueza dos dados brutos mostraria, por exemplo, a estrutura das famílias, quantidade e nomes de escravizados em cada domicílio e suas relações familiares, entre outras inúmeras possibilidades.

Depois do censo de 1872, o Brasil não realizou em 1880 e demorou a produzir um recenseamento com qualidade semelhante: os de 1890 e de 1900 são considerados imprecisos e com muitas falhas e o de 1910 foi suspenso por alegadas questões orçamentárias e jamais retomado.

O censo de 1920 é visto por especialistas como o primeiro da República com bons resultados, mas a periodicidade voltou a ser suspensa pela Revolução de 1930, que impediu o levantamento daquele ano.

Somente em 1940, já sob os cuidados do IBGE, o Brasil retomou sua produção censitária com qualidade e periodicidade decenal, que só seria quebrada novamente com o atraso da pesquisa da década de 1990, executada em 1991, e do censo atual, previsto inicialmente para 2020.

PRIMEIRO CENSO NACIONAL ATRASOU 20 ANOS

  • 1850

Lei que abre espaço no orçamento do Império para o recenseamento geral

  • 1851

Decretos regulamentam e mandam executar o censo e instituir o registro civil, função então exercida pelos párocos

  • 1851-1852

Guerra dos Marimbondos: revoltas populares em algumas províncias, principalmente no Nordeste e contra a instituição do registro civil, resultam na suspensão do censo

  • 1864-1870

Guerra do Paraguai

  • 1870

É realizado o censo da corte, que funciona como teste para o censo nacional, apenas no município neutro, centro do poder imperial

  • 1871

É criada a Diretoria Geral de Estatística (DGE); o órgão que executa o primeiro censo nacional é extinto em 1881, recriado em 1890, passa por diversas reformas até ser fundida com outras repartições em 1931 e, ainda naquela década, é substituída pelo IBGE

  • 1872

Começa o recenseamento geral do Império no dia 1º de agosto

  • 1876

Quinto relatório da DGE afirma que a operação censitária foi concluída

Nesta segunda-feira (1º), os agentes recenseadores devem começar a visitar 75 milhões de domicílios espalhados pelo Brasil.

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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