Extrema direita se organiza ao redor do nacionalismo – Demétrio Magnoli
Nos dois lados do Atlântico Norte, a direita tradicional experimenta crises profundas. A interpretação habitual coloca ênfase na ascensão de partidos da extrema direita. Mas a tendência principal é outra: a ocupação do espaço eleitoral da direita democrática e conservadora por uma “nova direita” organizada ao redor do nacionalismo.
O fenômeno manifesta-se nos Estados Unidos pela conversão do Partido Republicano num “partido de Trump”. Desde 2016, o movimento Make America Great Again (MAGA) tomou de assalto a antiga fortaleza republicana. O instrumento da conquista foi o sistema de primárias, pelo qual uma base militante minoritária tem a prerrogativa de selecionar as candidaturas às eleições gerais.
Trump nunca alcançou o apoio da maioria dos eleitores. Elegeu-se, oito anos atrás, graças ao mecanismo do Colégio Eleitoral, depois de obter 3 milhões de votos menos que Hillary Clinton. Perdeu para Biden, em 2020, por margem de 7 milhões de votos. Mas, na moldura do sistema bipartidário, o controle do Partido Republicano eleva o chefe do MAGA, um insurrecionista que incitou a invasão do Capitólio, à condição de pretendente viável à Casa Branca.
O MAGA deve ser classificado como extremista, pois ergue-se contra as instituições democráticas dos Estados Unidos. O adjetivo, porém, já não se aplica ao Reunião Nacional (RN), que se consolidou como um dos grandes partidos da França.
O partido nasceu em 1972, como Frente Nacional (FN), fundado por Jean-Marie Le Pen, que fez seu caminho na política a partir de grupos nostálgicos da França de Vichy, o regime colaboracionista instalado na parte não ocupada do país durante a Segunda Guerra Mundial. Mas sua filha Marine tomou o controle do FN em 2011 e, ao longo dos anos, expulsou o fundador, expeliu as correntes extremistas e sanitizou a plataforma partidária.
Marine vetou o antissemitismo e abandonou o projeto de Frexit, retirada francesa da União Europeia. Numa tentativa de apagar a memória de seus efusivos elogios a Putin, condenou a invasão russa da Ucrânia. Crucialmente, trocou a referência a Vichy pela reverência ao general De Gaulle, líder da resistência antinazista.
A marcha da direita extremista à direita nacionalista destinava-se a capturar a base social da centro-direita histórica, que tinha sua coluna vertebral no partido gaullista. A estratégia funcionou: o eleitorado da direita tradicional moveu-se rumo ao RN. É por esse motivo que o partido de Marine chegou ao limiar do poder, acabando barrado no turno final.
A culpa é dos imigrantes — eis o mantra compartilhado pela direita dura, nas suas versões mais ou menos extremas. Nos Estados Unidos, Trump promete mobilizar as Forças Armadas para deportar milhões de imigrantes. Na França, o RN desistiu das deportações em massa, sem renunciar a suas marcas distintivas: xenofobia e islamofobia. Hoje seu compromisso central é cancelar o “direito do solo”, princípio criado pela Revolução Francesa que assegura nacionalidade a todos os nascidos em território francês.
O caso da França não é único. Lá perto, em velocidade maior, Giorgia Meloni reinventa o Irmãos da Itália, uma corrente de origem neofascista, como partido da direita nacionalista, numa operação ainda incompleta. A metamorfose atraiu o eleitorado da direita tradicional, proporcionando-lhe a liderança da coalizão que triunfou nas últimas eleições gerais.
Na outra margem do Canal da Mancha, uma tempestade diferente assola a direita. O Partido Conservador britânico, massacrado pelos trabalhistas, experimenta a defecção de parte de seu eleitorado para o novo partido criado por Nigel Farage. O Reform UK ancora sua plataforma numa xenofobia histérica, de fundo racista, e abriga chusmas de militantes oriundos do neonazista BNP. Por isso, e apesar de uma votação surpreendente, está circunscrito a um gueto social e político.
A extrema direita, fascista ou neonazista, não bate às portas do poder na Europa. Do ponto de vista dos direitos humanos e da coesão das democracias ocidentais, o perigo verdadeiro encontra-se na metamorfose que gera partidos da direita nacionalista capazes de vencer eleições.
Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em geografia humana
Fonte: O Globo