‘Após atos, governo não tem interlocutores’, afirma socióloga
A população que se identificou com os movimentos de rua de junho não atendeu à convocação das centrais sindicais para o Dia Nacional de Luta, quinta-feira. Para a socióloga Maria da Glória Gohn, professora da Unicamp e especialista em movimentos sociais, a nova geração de jovens não se identifica com as formas de organização existentes e reage ao modelo de sociedade em que vive, “de muito consumo, mas de qualidade de vida sofrível”.
Autora do recém-lançado “Sociologia dos movimentos sociais” (Cortez Editora), ela respondeu às questões do Estado por escrito logo que desembarcou, quarta-feira, de uma viagem de observação à Turquia, onde uma onda de protestos de rua contesta o governo do primeiro-ministro, Tayyip Erdogan.
Como define os movimentos de junho no Brasil?
Os movimentos ocorridos em Junho de 2013 em 12 capitais e cidades de médio porte brasileiras foram denominados pela mídia e outros como “manifestações”. De fato eles foram, na maioria das vezes, manifestações que expressam estados de indignação face à conjuntura política nacional. As mobilizações adquiriram, nestes eventos, caráter de movimento de massa, de protesto, revolta coletiva, aglutinando a indignação de diferentes classes e camadas sociais, predominando a classe média propriamente dita; e diferentes faixas etárias, destacando-se os jovens. Os movimentos de Junho de 2013, que provisoriamente chamarei de “Movimento dos Indignados das Praças, Ruas e Avenidas”, focalizam demandas locais, regionais ou nacionais. Atuam em coletivos não hierárquicos, com gestão descentralizada, produzem manifestações com outra estética – não dependem de um carro de som para mover a marcha, não usam bandeiras e grandes faixas de siglas ou palavras de ordem; os participantes tem mais autonomia, não atuam sob a coordenação de uma liderança central. São movimentos com valores, princípios e formas de organização distintas de outros movimentos sociais, a exemplo dos sindicais, populares (urbanos e rurais), assim como diferem dos movimentos identitários (mulheres, quilombolas, indígenas, etc.). Para compreender essa onda de mobilizações, além de identificar as especificidades e diferenças dos jovens em ação, uma questão significativa é: porque uma grande massa da população aderiu aos protestos. Que sentido e significado estes jovens atribuíram aos acontecimentos para transformá-los em movimento de massa com ampla legitimidade?
Sabe-se que protesto de Junho foi desencadeado por coletivos organizados com o predomínio do MPL- Movimento Passe Livre, a partir de uma demanda pontual – contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos. Olhando-se para os noticiários da mídia nacional nos últimos meses pode-se listar os prováveis motivos para a indignação que levou milhares de brasileiros às ruas, aderindo ao movimento dos jovens, a saber: os gastos altíssimos com estádios da Copa, megaeventos e uso do dinheiro público em eventos promocionais, a má qualidade dos serviços públicos, especialmente nos transportes, educação e saúde. Outros agravantes são: a persistência dos índices de desigualdade social, inflação, denúncias de corrupção, clientelismo político, a PEC 37, sentimento de impunidade, sistema político arcaico, a criminalização de movimentos sociais – especialmente rurais e indígenas, o projeto de Lei que tramitava no Congresso sobre “cura gay”, a condução de importantes postos políticos no cenário nacional por políticos com passado marcado por denúncias etc. Ou seja, a despeito das políticas governamentais de inclusão social, e a boa imagem internacional do país até recentemente, como um emergente de sucesso, o Brasil tudo azul, para o senso comum de seu povo em geral, era uma construção irreal. Este ‘povo’ propriamente dito fazia suas leituras nas entrelinhas das notícias do dia-a-dia, e quando viu na TV e jornais jovens sendo espancados por lutarem por bandeiras que eram também sua, a mobilidade urbana, este ‘povo’ saiu às ruas e mais uma vez demonstrou que a cordialidade do brasileiro tem limites, dado por valores que atingem sua dignidade, e provocam ira e indignação. Estima-se que mais de um milhão de pessoas saíram às ruas no país em Junho. Só no dia 17, dados da mídia contabilizaram cerca de 230 mil pessoas, do Pará ao Rio Grande do Sul.
Em que se assemelham e se diferenciam dos movimentos que ocorreram no Oriente muçulmano, na Europa e nos Estados Unidos?
Os movimentos brasileiros de Junho de 2013 têm vários pontos de semelhanças e muitos de diferenças com os citados na pergunta. Em comum: fazem parte de uma nova forma de movimento social composta predominantemente por jovens, escolarizados, predominância de camadas médias, conectados por e em redes digitais, organizados horizontalmente e de forma autônoma, por isso são críticos das formas tradicionais da política tais como se apresentam na atualidade -especialmente os partidos e os sindicatos. As convocações para os atos são feitas via as redes sociais e a grande mídia contribui para a adesão da população ao noticiar a agenda e os locais e hora das manifestações. Eles têm estética particular nas manifestações: no conjunto não desfraldam bandeiras de organizações e nem usam faixas pré-confeccionadas; usam palavras de ordem em cima da demanda foco, sem carros de som, e o batuque ou as palmas são utilizados no percurso das marchas. O movimento acontece ’em se fazendo’ e não via grandes planos de organizações com coordenações verticalizadas. Cada um leva seu cartaz em cartolinas, uma nova mensagem pode gerar uma decisão tomada no calor da hora. Na estética individual predomina o preto, máscaras de gás ou outras (como a de Guy Fawkes, do Anonymous), e eventuais percings. Eles têm sido alvo de ações violentas por parte da repressão policial. Conectam-se à redes de apoio internacional e a solidariedade entre eles é um valor e um princípio. São laboratórios de experimentações de novas formas de operar a política. Dirigem suas reivindicações a personagens específicos da cena público-política de cada país. Por esta razão, os movimentos brasileiros diferenciam-se dos Indignados da Europa, especialmente, Espanha, Portugal e Grécia, países em profunda crise econômica causada pelas políticas neoliberais de ajustes fiscais, controle e monitoramento pela ‘troika’ (FMI+ Banco Central Europeu), desemprego, retirada de direitos sociais, corte de salários, dispensa de funcionários públicos etc. Os Indignados brasileiros diferem mais ainda dos movimentos da Primavera Árabe devido à frágil democracia e forte controle social que predominam na maioria daqueles países e as relações entre política e religião via o Islamismo. Finalmente os Indignados nacionais diferem do Occupy Wall Street não só porque adotaram formas diferentes de agir, mas porque eles tiveram, no início, uma pauta específica: contra o aumento da tarifa e lutar pela tarifa zero. Eles não ocuparam um território específico como o Occupy, optando pelas passeatas; e nem realizaram bloqueios – tática que passou a ser utilizada depois, em atos que deram sequência às manifestações de Junho, em movimentos de caminhoneiros, motoboys, e no Dia Nacional de Luta (11/07/2013), organizado por nove centrais sindicais, MST, UNE, movimentos populares de moradia etc. reunindo cerca de 105 mil pessoas no país. Neste dia o MPL/SP optou pelo apoio à manifestação dos metroviários, mas não ao conjunto das manifestações, que considerou ter uma pauta ampla, burocratizada, focada só nos trabalhadores.
Como se diferenciam dos movimentos de 1968 e dos anos 1990 no Brasil?
1968 foi marcado, no Brasil, por movimentos que lutavam, em primeiro lugar, contra o regime militar vigente, em segundo pelo desejo de participar em uma sociedade que se modernizava mais ainda tinha acessos restritos, como à universidade com o problema dos ‘excedentes’ nos vestibulares. Certamente que havia no Brasil a influência de Maio de 1968 na França, e de outros países onde ocorreram mobilizações de estudantes. Os pontos comuns entre os movimentos de 2013 e 1968 são: o protagonismo de jovens, especialmente estudantes; a falta de espaço e canais para vocalizar demandas; a influência de ideias do socialismo libertário, o uso de meios de comunicação da época para articularem às ações – muros e a TV em 68, redes da mídia e celulares/IPAD etc. em 2013. Como diferença destaca-se a relação com a política. Os jovens de 68 queriam participar da política, eram contrários às políticas conservadoras e porta vozes de políticas libertárias, aderiam a grupos com ideologias políticas; os manifestantes de 2013 querem outra política, diferente dos termos e formas como tem sido praticada. Querem outra política sem enquadramentos partidários e ideológicos, mais libertários. Em 68 propunham-se alianças com operários e camponeses. Em 2013 não se coloca a questão de alianças de classe; questões da ética, da moralidade pública são prioritárias. Em síntese: em 68 os jovens queriam mudar a sociedade via mudanças políticas. Hoje, querem mudanças na política via atuação diferenciada do Estado no atendimento à sociedade. Não negam o Estado, querem um Estado mais eficiente.
A década de 1990 também é um referencial comparativo interessante para o caso brasileiro porque o protagonismo da sociedade civil despertou, na época, para a questão da ética e dos direitos, levando ao impeachment do ex-presidente Collor de Melo. Os estudantes ‘cara-pintadas’ tiveram lugar de destaque na cena dos protestos. A conjuntura política do país passou a mudar e levou a formas institucionalizadas das reivindicações e demandas, com a construção dos conselhos e outros, previstos na Constituição de 1988. Os movimentos populares urbanos se reorganizaram para os novos tempos, de atuação na esfera pública. As ONGs cresceram e passaram a ocupar lugar de destaque na interlocução com o governo, atuando em projetos sociais com apoio de fundos públicos. Novas leis surgiram para regulamentar à relação Estado-sociedade civil. O conflito social no campo acirrou-se e o MST passou a ocupar a cena como o líder das lutas sociais. A virada do século trouxe o protagonismo de atores da sociedade civil organizada em temas dos movimentos identitários, formados a partir da onda de novos movimentos sociais que sacudiu o país ao final dos anos de 1970-1980, atuando em formas institucionalizadas, normatizadas por leis sob controle de máquinas governamentais. Os movimentos alterglobalizantes do final dos anos de 1990 e 2000, presentes nas edições do Fórum Social Mundial, introduziram novas pautas e formas de agir e se organizam de forma transnacional, com temas globais que podem ser acionadas em qualquer lugar do mundo. Nesta forma, as demandas do cotidiano perderam espaço na agenda social global. Criou-se assim condições para a nova onda de protestos, tais como o Movimento dos Indignados nas Praças, Ruas e Avenidas, que desencadearam mobilizações sem precedentes nas manifestações de Junho 2013 no Brasil.
O que querem estes jovens brasileiros que foram para as ruas protestar? Por que estão insatisfeitos se a educação foi ampliada, se estamos em pleno emprego e os problemas econômicos são recentes?
Eles querem ser escutados, querem falar e denunciar o desrespeito aos diretos dos cidadãos, e ter canais próprios para expressar demandas que não são específicas da categoria jovem, mas de toda sociedade. Vocalizam, por exemplo, que querem educação de qualidade (que inclui mais verbas, salários dignos, infraestrutura física adequada, formação para professores e demais profissionais da rede pública, bibliotecas e salas de informática, metodologias adequadas, transporte gratuito para os estudantes etc.). Para o ensino superior não aceitam ações apenas informadas por índices e provas, políticas de cotas, programas como PROUNI, etc. Na área da saúde idem. Os jovens são otimistas com o futuro e desencantados com o presente, simultaneamente. Do passado, poucos têm trajetórias de militância e experiências associativas anteriores. Participam de coletivos, mas preservam valores individualizantes, que é diferente de ser individualista. A individualização é uma revolução de valores silenciosa que se observa em muitos países europeus na atualidade. Busca-se autonomia aliada à aspirações de ordem qualitativa; o desenvolvimento econômico é uma condição necessária, mas não suficiente. Há outros fatores para dar sentido à autonomia como respeito à cultura religiosa, senso cívico, interesse por causas públicas, participação associativa, confiança no outro e nas instituições, liberdade de escolha etc. Há falta de perspectivas aos jovens sobre o futuro deles na sociedade atual. As políticas públicas de inclusão social propiciaram a ampliação do acesso ao ensino superior, mas o mercado de trabalho continua elitista. A maioria dos empregos é no setor de serviços. Os raros projetos sociais oficiais para a juventude circunscrevem-se a eventos culturais, oficinas (música, informática, hip hop). Além de insuficientes, de oferta irregular, estes projetos são voltados para o jovem das periferias, esquecendo-se dos jovens das camadas médias, não atingem o universo dos sonhos e desejos de perspectivas dos jovens em geral.
Por que a rejeição e hostilidade aos partidos políticos?
Estes movimentos representam todos aqueles que têm, na atualidade, uma profunda falta de confiança em toda forma de política e categoria de políticos. Por isso sua mensagem foi respondida por milhares que uniram-se a eles, indo às ruas. Eles querem outro país onde a ética e política andem juntas. Querem uma revolução na forma de operar a política e não uma reforma ou remendo do que existe. Não confiam na política atual e nem nos políticos. Negam a política atual e isso também é uma forma de propor outra coisa. A exemplo do MPL, que se declara apartidário, mas não antipartidário, eles querem renovar a política e o tipo de partidos e políticos atuais. Por isto o tema de uma reforma política inicialmente não lhes atraiu – a reforma seria feita pelos políticos que estão aí, que eles estão contestando. Não se sentem representados no quadro político institucional existente, eles não têm canais de expressão. Com isso detecta-se também uma crise de representação social destes grupos e uma crise de legitimidade das instituições públicas. A linguagem política dos manifestantes é outra. Seus códigos não se enquadram em planilhas, organogramas, planejamentos, siglas de planos e projetos.
Em que se inspiram estes movimentos? Que ideologias os inspiram?
Inspiram-se em variadas fontes, segundo o grupo de pertencimento de cada um. Como rejeitam lideranças verticalizadas, centralizadoras, não há hegemonia de apenas uma ideologia, utopia ou esperança que os motivam. Alguns retiram da esquerda ensinamentos sobre a luta contra o capital e as formas de controle e dominação do capitalismo contemporâneo, na busca da emancipação. Do anarquismo e socialismo libertário, grupos ressuscitam e renovam leituras sobre a solidariedade, a liberdade dos indivíduos, a autogestão, e a esquecida fraternidade-retomada nas ações de enfrentamento à repressão policial. Há também um novo humanismo na ação de alguns, expresso em visões holísticas e comunitaristas, que critica a sociedade de consumo, o egoísmo, a violência cotidiana – real ou monitorada pelo medo nas manchetes diárias sobre assaltos, roubos, mortes etc., a destruição que o consumo de drogas está causando na juventude e outros. Busca-se reumanizar os indivíduos, a paz, o combate à violência. Muitos não têm formação alguma, estão aprendendo na luta do dia-a-dia, formatando seus valores conforme o calor da hora.
Que reivindicações sintetizam as palavras de ordem das atuais manifestações? Quais são os grandes temas que mobilizam estes jovens?
No início, sabemos, o foco esteve nos transportes públicos, que no Brasil é transporte coletivo porque o caráter público se esvai com as concessões às empresas privadas, na sua operacionalidade. Depois o leque de demandas ampliou-se para outros serviços públicos (saúde e educação).Com a adesão de multidões às manifestações, as demandas ampliaram-se mais ainda e o alvo passou a ser ‘contra tudo’, seguida da denuncia sobre a violência da polícia. Os slogans dos cartazes, a maioria deles escritos à mão, rudimentares, são emblemáticos para ilustrar esta questão. “Nossos sonhos valem mais que 0,20”; “Democracia Já”, “Desculpem o transtorno, mas estamos construindo outro Brasil”, ou “Desculpem o transtorno, estamos mudando o país”, ” A Juventude acordou”,” O povo não deve temer o governo, o governo deve temer o povo”,” O Gigante acordou”,” Ou para a roubalheira, ou paramos o Brasil” etc. Frases que proferiam também expressam suas ideias: “O povo unido não precisa de partido”, “Parem de falar que é pela passagem. É por um Brasil melhor”. No caso de São Paulo, um ativista do MPL deixou claro “Nós queremos um novo plano diretor e maior mobilidade na cidade”. Portanto, aqueles que afirmam não ter o movimento metas, propostas, projetos, estão sendo cegos e surdos porque suas demandas são à base de outro modelo de desenvolvimento, baseado na escolha de outras prioridades nas políticas públicas, e em outros parâmetros éticos para os políticos que ocupam cargos públicos.
O que é “igualitarismo democrático” no nosso caso específico? Se aplica aos movimentos dos nossos jovens?
Uma das questões profundas que está em causa nas manifestações de Junho no Brasil, e em manifestações em outras partes do mundo, é a discussão da democracia. A democracia representativa está em crise, à democracia direta é um ideal, viável apenas em pequenos grupos ou comunidades; a democracia deliberativa poderia unir as duas anteriores, mas ainda é um modelo frágil, que padece de arranjos clientelistas nos poucos casos onde ocorre. Em suma, a democracia está em crise, mas há certo consenso de que ela é necessária. Resta, portanto, buscar nos atuais movimentos os indícios de novas formas de organização política, nos marcos da democracia. Seriam eles movimentos sociais em transição para movimentos políticos, que construiriam novas formas de representação? Talvez sim, desde que se entenda a política de forma diferente da atualidade. A política como arte da negociação para a construção do bem comum. Aqueles que decretaram a morte das utopias precisam rever suas ideias. A nova geração de jovens que se organizou e foi às ruas em Junho de 2013 não se identifica com as formas organizativas existentes, e estão atentas ao modelo de sociedade que vivem. Muito consumo, mas qualidade de vida sofrível.
O governo federal está tentando responder às reivindicações com uma reforma política através de plebiscito. Esse é o caminho? Isso será suficiente para satisfazer os movimentos em curso?
Políticos e autoridades governamentais mostraram-se surpresos com as manifestações em Junho. Após o impacto inicial, o governo federal passou a criar uma nova agenda para dar resposta à onda de mobilizações sociais. Isso já demonstra uma vitória e uma conquista da jornada de lutas de Junho, muito além da redução dos centavos nas tarifas. Os efeitos das manifestações foram sendo produzidos paulatinamente e observados na adesão de milhares de pessoas às manifestações, na repercussão internacional das manifestações, em jornais, TVs, Revistas, atos de apoio aos protestos (em Londres, Lisboa, Madri, Barcelona, Copenhagen, Berlin, York, Sydney, Atenas, Istambul etc.),e na aceleração na aprovação ou rejeição de propostas no Congresso (a exemplo do arquivamento da PEC 37 e do projeto da ‘cura gay’). As manifestações levaram também, em Julho, a retomada das ações de mobilizações nas ruas por parte das centrais sindicais e movimentos populares rurais e urbanos, que há muito circunscreviam suas ações a atos em Brasília e na participação em conferências e eventos co-organizados por secretarias governamentais. Não deixa de ter significado também a queda da popularidade do governo federal e da Presidenta da República como indicadores claros de que o movimento não foi apenas duas semanas de agitação nas ruas. Certamente que o plebiscito-instrumento democrático previsto na Constituição foi uma ideia apressada, não bem explicitada, que não resolve no curto prazo as demandas colocadas. Ele serviu para diluir o debate sobre a conjuntura das mobilizações, e rejeitado pelo Congresso. O governo esta tendo dificuldade de encontrar interlocutores após as manifestações de Junho. Ao retomar uma agenda de diálogo com os movimentos sociais, em Julho, os convidados para ir ao palácio presidencial foram os mesmos dos últimos dez anos: movimentos rurais, centrais sindicais, movimentos identidários (mulheres, afrodescendentes, indígenas, movimento LGBTTTS etc.), ambientalistas etc. As novas formas de movimentos, organizadas por ativistas em torno de tópicos específicos, como o MPL e outros coletivos destacados neste texto, não estavam anteriormente na agenda das políticas públicas.
No seu livro não há menção ao Movimento do Passe Livre, que deu início a esta onda de manifestações. Qual a importância deste grupo?
O MPL foi criado em 2005 em Porto Alegre, presente em manifestações importantes de estudantes em Florianópolis, Salvador etc. na questão das tarifas de ônibus . Promoveram ações em 2006 que denominavam de ‘escrachos’, momentos em que ridicularizaram atos oficiais e pautavam a demanda da Tarifa Zero. Segundo o site do MPL, ele se define como: “um movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc.” (www.saopaulo.mpl.org.br).
Meu livro, Sociologia dos Movimentos Sociais(Cortez 2013) foi lançado em Abril deste ano,e discute movimentos de jovens entre os anos 2011-2012, (os Indignados europeus, Wall Street, Primavera Árabe, no Brasil) e Maio de 68 na França. Ele retrata o cenário de novíssimos movimentos sociais, do gênero que esteve presente nas manifestações de Junho no Brasil. Não listei nominalmente o MPL mas ele foi incluído no rol das novas reivindicações dos atuais movimentos sociais brasileiros, ao citar a sua principal demanda – “passe livre nos transportes públicos”( pág. 68). O MPL foi abordado em outro livro meu como parte do movimento estudantil (Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis, Vozes, 2010). A extensão do bilhete único existente em várias cidades brasileiras foi uma conquista que deve ser atribuída à luta do MPL. Dado o papel que o MPL desempenhou nas manifestações de Junho, certamente ele passará a ter um lugar central em novas manifestações futuras e receberá atenção de analistas e gestores. É bom recordar também que a luta pelos transportes públicos é histórica. Relembro a “Revolta do Vintém” em 1880 no Rio de Janeiro, e a luta por transporte (ônibus) ao final dos anos de 1970, em movimentos sociais populares em bairros da periferia em várias cidades brasileiras apoiados pelas CEBS – Comunidades Eclesiais de Base. A mobilidade urbana é uma questão central para o cidadão, para o exercício da cidadania e une todas as camadas sociais, que sofrem o pesadelo dos deslocamentos diários no trânsito, de ônibus, carro, trem ou metrô lotados.
Uma das evidências dos que acompanham as manifestações é de que o movimento reivindicatório sem violência está espremido entre grupos que agem com violência e a repressão policial. Como a senhora analisa este embate?
As manifestações iniciadas em São Paulo foram caracterizadas inicialmente, na mídia e por muitos políticos, como atos de “vândalos”. Uma manifestante revoltada com este tratamento saiu no dia 13 de Junho com um cartaz “Não sou vândalo mídia”. Neste dia, a 4ª manifestação do movimento em São Paulo, a policia tratou a todos como inimigos, houve centenas de feridos, muitas prisões e muita indignação. Este dia marcou a virada do olhar da sociedade, que passou a apoiar o movimento e ir às ruas para se manifestar também. A partir de então se pode observar melhor o que foi denominado como as ‘tribos’ que compunham o núcleo permanente dos manifestantes. Em São Paulo, participaram das manifestações, junto com o MPL, integrantes de partidos de esquerda PSOL, PSTU, PCO e alguns militantes do PT. Todas as bandeiras partidárias foram rejeitadas nas manifestações, gerando inclusive tumultos entre os que insistiram em desfraldá-las. Grupos anarquistas (Black Block, Anonymous, Kaos) estiveram presentes, com máscaras ou não. Teve-se também a presença de alguns punks. Os novíssimos movimentos sociais dos indignados das praças, ruas e avenidas, em várias partes do mundo, contam com a presença de grupos anarquistas e alguns reagem com violência à violência policial, em dadas circunstâncias. Eles são parte das novas formas de movimentos. Representam a ‘resistência’ – expressão usada nos países da Primavera Árabe para indicar os que não desistem, os que enfrentam e afrontam o poder constituído. Muitos são presos, feridos ou mortos, pois são alvos prediletos das ações de repressão da polícia. Quando ocorrem ações violentas, os confrontos são desiguais porque a maioria dos manifestantes portam apenas equipamento de autoproteção -máscaras, água, vinagre, bolinhas de gude para atrapalhar a cavalaria etc. O fato dos movimentos serem constituídos por coletivos diversificados e diferenciados causa problemas internos quando um dos grupos aciona ações próprias, ou quer se destacar – mostrando suas bandeiras partidárias, por exemplo, ou usando a violência depredando bens públicos e privados. Acrescentem-se às dificuldades nas ações dos coletivos fatos como os ocorridos em algumas das manifestações, quando grupos de populares aproveitaram a confusão e saquearam lojas e edifícios públicos. Como estas diferenças poderão ser resolvidas, em um sistema de autogestão, sem líderes chaves (motivo de dificuldade também no diálogo ou negociação com os poderes constituídos), é uma incógnita. Um enigma a decifrar, pois é impossível manter mobilizações de massa por muito tempo. Vários analistas têm alertado para a fragilidade organizatória do movimento, a não definição de rumos, e o perigo de ser apropriado por forças conservadoras da direita, como já ocorreu em outros momentos históricos de tensão social. Entretanto, não se pode esquecer a capacidade de aprendizagem dos ativistas, seu poder de reflexão e elaboração de sínteses a partir da prática. Muitos deles estão na fase de batismo na política, mas aprendendo muito. Outros, sabem o que não querem, e buscam definir o que querem nos parâmetros dos valores que acreditam. Por tudo isto é cedo para grandes balanços sobre as ‘mobilizações de Junho’. O processo está em curso, um novo ciclo apenas iniciou-se, ele deve continuar, indo e vindo, como as ondas do mar.
Fonte: O Estado de São Paulo