A gravidade Thatcher – Lucia Guimarães
Quem diria. Na semana da morte de Margaret Thatcher, a artilharia da indignação do Partido Trabalhista britânico foi apontada para o homem que pôs fim à era Thatcher e manteve os trabalhistas no poder por 13 anos. O motivo da discórdia foi o sermão, quer dizer, ensaio, que o ex-primeiro-ministro Tony Blair passou em seu partido, sob o pretexto de colaborar com o centenário da revista New Statesman.
A salva de pitos doeu a partir do título: Os Trabalhistas Devem Procurar Respostas e não Simplesmente Aspirar a Ser o Repositório da Ira do Público. O público britânico não se deslocou para a esquerda, apesar do estrago causado pela crise financeira, alertou Blair. Se os trabalhistas, hoje na oposição, pensam que basta demonizar a austeridade imposta pelo governo conservador de David Cameron, estão se iludindo, concluiu.
A resposta veio rápida e ressentida. David Miliband, o atual líder trabalhista, prefere manter distância da agenda do New Labor de Tony Blair e de seu liberalismo econômico.
A ironia não se perde para Charles Kupchan, membro do Council on Foreign Relations, em Washington. A batalha pelo centro continua a ser travada, lembra Kupchan, que foi assessor de segurança nacional de Bill Clinton.
Em 2012, Kupchan lançou No One’s World: The West, the Rising Rest, and the Coming Global Turn (Mundo de Ninguém: O Oeste, os Emergentes do Resto e a Virada Global a Caminho), em que avalia o declínio da influência americana e prevê que a injeção de capitalismo no mundo emergente não vai se traduzir necessariamente em mais democracia.
Kupchan, também professor da Universidade Georgetown, falou ao Aliás sobre a influência da era Thatcher entre seus defensores e detratores.
Por que a influência de Margaret Thatcher no movimento para o centro político europeu é importante?
Acho que as principais correntes da esquerda europeia emergiram da 2ª Guerra profundamente marcadas pelo socialismo. Elas tinham aversão a forças de mercado. Mas, num mundo progressivamente globalizado e interdependente, os programas originais da esquerda ficaram anacrônicos. Margaret Thatcher teve um papel chave no deslocamento da esquerda europeia para o centro e para um alinhamento com novas realidades econômicas. Mas seu papel foi, naturalmente, controverso. Ela enfrentou sindicatos, mexeu com o sistema de bem-estar social e foi vista como elitista. Sua agenda política aumentou a disparidade econômica. Depois de deslocar a força de gravidade para o centro na Grã Bretanha, ela influenciou o resto do continente.
Os temas econômicos que dominaram o governo Thatcher continuam atuais?
Eu diria que vários aspectos que marcaram o período de Margaret Thatcher continuam conosco, mas transformados. Depois da crise financeira de 2008, acho que a relação entre o capitalismo, a globalização e a democracia está disponível para ser dominada por novas ideias. A agenda de Thatcher foi bem-sucedida num objetivo mais amplo de tornar a economia britânica mais liberal e mais voltada para o mercado. Ainda temos que determinar quanto aquele período provocou os excessos e relaxou a regulamentação financeira que deram na crise. Nosso dilema agora é: quando o mercado fica livre demais? O desafio para o futuro é encontrar um modelo de capitalismo que promova mais igualdade. Do jeito que está, vai haver uma tendência para extremos. Devemos lembrar que uma das características marcantes da situação em que se encontram as democracias ocidentais hoje é o sofrimento da classe média. Essa questão é central na polarização e no descontentamento que vemos na Europa e também nos Estados Unidos. A democracia liberal do Ocidente progrediu graças ao crescimento da classe média. Não é à toa que sociedades mais agrárias e com maior pobreza urbana como China e União Soviética foram mais propícias ao crescimento do socialismo.
E como os partidos europeus lidam com os dilemas expostos pelo governo Thatcher na década de 1980?
É importante notar que ainda temos ecos do legado de Thatcher na crise europeia atual. A Europa luta com um dilema entre eficiência dos mercados e como estimular crescimento. Se você examina os partidos tradicionais da esquerda europeia hoje, alguns estão passando pela transformação dolorosa que os trabalhistas britânicos viveram. Veja Pier Luigi Bersani, de centro-esquerda, que teve margem apertada de vitória na eleição italiana. Ele se afastou de comunistas e socialistas. A Itália não tinha centro. Quem não era de direita tinha vínculo com o comunismo ou o socialismo. Na França, vemos uma luta também pelos corações e mentes da esquerda. Um exemplo é como o esquerdista Jean-Luc Mélenchon teve votação expressiva na última eleição presidencial.
No caso da Alemanha, as reformas sindicais e o deslocamento para o centro aconteceram antes de Angela Merkel.
Sim, as reformas econômicas alemãs podem ter sido consolidadas por Angela Merkel, mas não é coincidência que a maior parte delas tenha sido implementada por Gerhard Schröder. Como político do Partido Social Democrata, ele teve mais credibilidade para se deslocar para o centro.
Quanto vai haver, nesse processo de avaliação da era Thatcher, de deturpação de sua mensagem?
Sim, pode haver a demagogia de proclamar “deixemos os mercados dominarem a economia”. Mas essa mensagem perdeu a credibilidade no segmento principal do espectro político. Mesmo que ainda não haja um consenso claro, muitos políticos compreendem que um mercado desgovernado não vai trazer de volta empregos e certamente não vai criar empregos para a classe média.
Como a classe média pode manter o nível de seus salários se os empregos industriais migraram para economias emergentes?
Poucos duvidam que deva haver intervenção do governo em treinamento profissional para redirecionar a força de trabalho. Não tenho dúvidas de que Margaret Thatcher e também Ronald Reagan são vistos hoje sob um prisma muito mais lisonjeiro. No seu tempo, ambos foram bem mais controversos. Eram vistos como figuras que desprezavam as obrigações do Estado de zelar pelos desfavorecidos e muitos gostariam de esquecer isso. Mas eu não os culparia pelos excessos do mercado que vemos hoje. A mudança mais profunda que aconteceu depois deles foi a globalização. Vimos como foi difícil para economias industriais avançadas reterem sua base de manufatura. A globalização de finanças e do comércio tornou o mundo muito mais volátil e é diretamente responsável pelo crescimento da desigualdade.
Enquanto a crise se agrava, como vê o cenário da radicalização política? O centro pode ser esvaziado?
Não vejo uma esquerda organizada na Europa. Acho que a direita e a esquerda tradicionais continuam a exibir tendências para o centro. Na Grã Bretanha, por exemplo, não há uma diferença radical entre os conservadores no poder e o Partido Trabalhista. Mas esse movimento para o centro provoca uma perda “de mercado” das posições mais definidas como de direita ou esquerda. Acho interessante que, mais de três anos depois da crise financeira, nenhum partido mais radical ou alternativo tenha tomado o poder num país europeu. Falo de um partido que rejeite fundamentalmente o status quo. Mas eles estão crescendo e mordendo o calcanhar dos centristas. Com isso, os centristas recorrem mais ao populismo. É o que acontece, por exemplo, com David Cameron na Inglaterra. Ele se assustou com o Independence Party a ponto de se sentir acuado o bastante para convocar um referendo sobre a permanência na União Europeia que surpreendeu muita gente. Outro exemplo de susto no centro é o comediante Bepe Grillo, do movimento Cinco Estrelas, na Itália. Certamente ele não será o próximo primeiro-ministro. Mas não acho impossível vermos o surgimento de um líder abertamente antiestablishment como ele. E acho curioso também que os mercados financeiros ainda não tenham punido a Itália pela crise. Talvez não acreditem que as reformas do Mario Monti possam ser desmanteladas. Outra possibilidade seria surgir um novo tecnocrata para quebrar o impasse da formação de governo, alguém mais apolítico, como o ex-primeiro ministro Giuliano Amato.
Quanto a tecnologia e a globalização agravaram o cenário de ingovernabilidade?
Ambas tornam mais difícil governar, no sentido de que os governos nacionais perderam o controle de políticas. Antes, um governante podia apertar um botão para obter um resultado como, por exemplo, a taxa de juros. Hoje, ele está preocupado com a cotação do renminbi chinês, com a produtividade da Hyundai na Coreia do Sul. É por isso, em boa parte, que o público sente tanta hostilidade contra instituições de governo. Os governantes não conseguem satisfazer como antes as expectativas de resultados.
O que o senhor pensa do legado de Margaret Thatcher como primeira mulher chefe de governo na Grã Bretanha que era hostil ao feminismo e nomeou apenas uma mulher para seus gabinetes?
Ela era uma política instintiva, zelosa de suas convicções, que não dava a menor bola para o fato de fazer uma escolha simbólica. Tenho a impressão de que não levava em conta o sexo do interlocutor ou adversário. O que queria era avançar suas políticas, não queria ser cerceada pelo feminismo, que considerava irrelevante no seu caso. Hoje não há espaço para esse comportamento. Seria politicamente incorreto. Mas sinto falta de políticos que expressem coragem, que não governem de olho nas pesquisas de grupos de foco, gente sempre com o dedo no ar para sentir a direção do vento. Tendo dito isso, vamos admitir que 2013 é um ano muito difícil para ser político em qualquer país. Vivemos um aumento de polarização e uma grande perda de confiança em instituições. O fato é que as democracias se superam na distribuição de privilégios. Mas são muito menos competentes na distribuição de sacrifícios. E os sacrifícios são inevitáveis na Europa de hoje.
PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE GEORGETOWN E MEMBRO DO COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS
Fonte: O Estado de São Paulo