“A carreira ocupou o espaço da religião”, diz autora

A sensação de estar ocupado o tempo inteiro é uma epidemia social. Mas por que não ter tempo para nada se tornou um símbolo de status? Quais são as consequências mais profundas de viver uma rotina sobrecarregada? Foi movida por questionamentos dessa natureza que a jornalista Brigid Schulte escreveu o livro “Overwhelmed: work, love and play when no one has the time” (em tradução livre, “Sobrecarregado: trabalhe, ame e se divirta quando ninguém tem tempo”), pela editora Sarah Crichton Books.

Casada, mãe de dois filhos e repórter no jornal The Washington Post há 15 anos, Schulte diz já ter sido pessoalmente afetada pela obsessão coletiva por trabalho.

No livro, que entrou para a lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, ela discute o delicado equilíbrio entre carreira e lazer – e propõe formas de fazer as pazes com o tempo.

Confira a entrevista completa que Schulte concedeu a EXAME.com, na qual ela expõe o que pensa sobre sucesso, expectativas e prioridades:

EXAME.com: Qual é o significado do trabalho para a sociedade atual? Por que precisamos dele?

Brigid Schulte: No passado, precisávamos do trabalho para sobreviver. Foi assim durante toda a história da humanidade. Precisávamos cultivar alimentos, caçar, nos defender. Estávamos sempre preocupados em garantir as nossas necessidades básicas.

Isso mudou drasticamente. Agora procuramos no trabalho um sentido para a vida. Para muita gente, a carreira responde a diversas questões existenciais, e ocupou o lugar da religião na hora de atender a dúvidas como “Quem sou eu?”, “Por que estou aqui?” ou “Que diferença faço para o mundo?”.

Entre o fim do século 20 e o começo do século 21, o trabalho adquiriu um significado muito poderoso. Hoje, ele tem menos a ver com a luta pela sobrevivência, e mais com a busca por identidade.

EXAME.com:  E o lazer? Qual é o sentido dele hoje em dia?

Brigid Schulte: Quando a humanidade ainda estava preocupada em sobreviver na natureza, era muito difícil ter lazer. Era quase um “trabalho em tempo integral” buscar comida ou fugir de animais selvagens!

Mas os raros momentos de lazer eram justamente aqueles em que conseguíamos imaginar, criar e sonhar. Não foi enquanto estava caçando ou coletando raízes que o homem inventou a roda. Quando está preocupado com a sua próxima refeição, você não tem tempo de ter ideias muito brilhantes!

O que quero dizer é que os momentos de ócio foram muito importantes historicamente para o desenvolvimento da própria civilização. Foi graças a eles que criamos a arte e a filosofia.

Hoje, o significado de lazer mudou muito. De forma geral, não existe mais tanta preocupação com a sobrevivência básica na natureza. Então, para muita gente, o trabalho ocupa o espaço do lazer. Nossas carreiras envolvem atividades que gostamos de executar. Isso é um grande problema. Uma das razões pelas quais trabalhamos tanto é justamente o fato de gostarmos das nossas profissões.

EXAME.com: O lazer “verdadeiro” se tornou então um motivo de culpa e vergonha?

Brigid Schulte: Sim. Basta pensar no ditado “Cabeça vazia é a oficina do diabo”. Existe a sensação de que você não pode ficar sem fazer nada. Em muitos países, existe um culto muito grande à exaustão e ao trabalho exagerado. As pessoas usam esse excesso como uma espécie de medalha de honra. Se você tira férias longas, é comum ouvir “Nossa, deve ser ótimo!”, com um tom sutil de desdém.

O que escapa a muita gente é que, se você trabalhar o tempo inteiro, mesmo amando o que faz, corre o risco de cair em estafa – o que acaba transformando você num profissional pior.

EXAME.com: A senhora afirma que estar sempre ocupado se tornou um símbolo de status. Como mudar a cultura que valoriza a falta de tempo?

Brigid Schulte: É um enigma de difícil solução. Se analisarmos a questão globalmente, temos algumas pistas. Os dinamarqueses têm bastante tempo livre, comparados ao resto do mundo. Como eles conseguem?

Bem, na Dinamarca há leis que prevêem um período curto de trabalho, mas também há uma questão cultural. Eles entendem que, se você não consegue terminar o seu trabalho em 30 e poucas horas por semana, você é ineficiente. O que importa é a performance, não o número de horas passadas no escritório.

Em outro país nórdico, a Suécia, todos tiram férias coletivas por um mês, durante o verão. É uma política pública, que eles chamam de “restauração coletiva”. Funciona muito bem. As vendas de antidepressivos caem radicalmente nesse período.

Já num outro país, como os Estados Unidos, se você tira férias minimamente longas, será reprovado pelos outros. Isso porque está imerso numa cultura de devoção excessiva ao trabalho.

Mas, se todos tirassem férias ao mesmo tempo, como na Suécia, o profissional não se sentiria tão inadequado. Pense na semana entre Natal e Ano Novo. A sensação desse período é ótima, justamente porque todos estão descansando juntos.

O desafio é, de alguma forma, tornar aceitável que muitas pessoas tirem férias ao mesmo tempo. É uma expectativa bem alta, eu reconheço, mas é uma ideia interessante para se ter em mente.

EXAME.com:  No passado, acreditava-se que a evolução da tecnologia nos daria mais tempo para o repouso e o lazer. Hoje, vivemos rodeados por aparelhos e máquinas, mas estamos cada vez mais atribulados. Como explicar essa contradição?

Brigid Schulte: Acho que a tecnologia é, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição. Na década de 1950, uma das grandes promessas da indústria era fazer as donas de casa ganharem tempo com a ajuda dos eletrodomésticos. Mas veio a publicidade e disse “Agora que você tem todos esses aparelhos eficientes, tudo tem que ser ainda mais limpo!”. Então o padrão de exigência por limpeza aumentou muito, anulando aquela suposta economia de tempo.

Esse exemplo esclarece muito do que vivemos hoje. Vamos pensar no email. Ele foi feito para tornar nossa comunicação muito mais rápida, fácil e descomplicada. Mas o que aconteceu? Hoje recebemos milhares de emails por dia, e grande parte deles é lixo. E não conseguimos desligar.

EXAME.com: Como isso se manifesta no ambiente de trabalho?

Brigid Schulte: A tecnologia eleva muito o nível de ansiedade no escritório. Mesmo durante as férias, as pessoas ficam angustiadas para saber o que está esperando por elas na caixa de entrada do email.

A sensação é de vigilância constante e você sente que nunca pode se livrar completamente daquele peso. Alguns ambientes transmitem a sensação de serem muito mais agitados e estressantes do que precisariam ser, simplesmente por causa dessa expectativa por respostas imediatas.

EXAME.com: A senhora defende que, já que o tempo é um recurso escasso, nossas expectativas também precisam ter limites. Isso significa que precisamos fazer uma escolha? Ou somos excelentes pais ou somos excelentes profissionais, por exemplo?

Brigid Schulte: Eu já fui vítima dessa armadilha, e eu tenho evitado recair nela. Prefiro me ver como um ser humano autêntico, completo. Você é mais do que só o seu trabalho ou só a sua família. Se você trabalhar com bom senso e inteligência, consegue ter uma performance excelente, sem precisar “se matar” por causa isso. Você é capaz de chegar em casa num horário decente e ter tempo suficiente para a sua família.

Quando nós achamos que precisamos “escolher” um único tipo de realização, é porque estamos comprando a ideia de que o trabalho precisa ser maníaco, louco. Eu discordo disso e estou tentando aplicar essa ideia à minha própria vida.

EXAME.com: Qual é o seu conselho para quem se sente sobrecarregado?

Brigid Schulte: O mais importante é perceber que você não está sozinho. Eu me senti solitária por muito tempo. Achava que todo mundo tinha vidas bem estabelecidas, e que eu era a única inadequada, desorganizada e neurótica. Mas a verdade é que todos são pressionados a trabalharem demais, a serem os melhores pais e a estarem sempre ocupados.

Quando você está se sentindo sobrecarregado no dia a dia, é preciso parar, respirar fundo e reavaliar a sua situação. Aquilo que nós achamos que precisa ser feito agora, neste minuto, muitas vezes pode esperar. Procure se perguntar: “Por que estou fazendo essa escolha? Isso é importante para mim? De quem é essa expectativa?”. É importante perceber as forças externas que atuam sobre as suas decisões, e questioná-las.

EXAME.com: As mulheres ainda são mais sobrecarregadas do que os homens? 

Brigid Schulte: Sim. As mulheres entraram para a força de trabalho, em massa, na década de 1970. Porém, em muitos países, quase nada mudou do ponto de vista cultural. As mulheres ainda são vistas como as responsáveis pela casa e pelos filhos.

Mas isso está mudando. O excesso de trabalho têm se “espalhado” pela sociedade. Solteiros também têm se sentido sobrecarregados, por exemplo. Os próprios homens também estão sentindo dificuldade em equilibrar vida pessoal e profissional. Eles estão começando a experimentar o dilema que as mulheres conhecem há 40 anos.

Isso é bom, porque, assim, mais pessoas conseguem entender que esse desequilíbrio não é só um “problema de mãe”. Quanto mais pessoas se perceberem afetadas, mais chances temos de escapar dessa armadilha enquanto sociedade.

EXAME.com: A senhora acredita que, no futuro, saberemos usar melhor o tempo? 

Brigid Schulte: Sim, sou otimista. É claro que faz parte da natureza humana essa necessidade de se ocupar constantemente. A perspectiva de morrer um dia é muito dura para nós. Então preenchemos os nossos dias para não ter que pensar nisso.

Mas, ao perceber que a sua vida não vai durar tanto, você muda as suas escolhas, usa o seu tempo para o que é mais importante. Sob essa perspectiva, você pode descobrir que a sua prioridade hoje é assistir ao seu filho de 3 anos estourar bolhas de sabão, dar uma caminhada ao ar livre ou reparar na cor do céu. Tenho esperanças de que conquistar essa sensibilidade é possível.

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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