Conheça a seguir cinco cidades que se tornaram ilhas de independência tecnológica e têm a receita para acelerar o desenvolvimento do país.
A inovação e a tecnologia sempre estiveram no DNA de São José dos Campos, no Vale do Paraíba paulista. Estão lá a Embraer e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), e foi essa associação entre empresa e academia num dos setores econômicos mais avançados do mundo que colocou a cidade entre as 20 mais ricas do país. Aviões são fruto de alto desenvolvimento industrial. A novidade é a incorporação do uso da tecnologia à gestão pública.
Em março, São José, que fica a 98 quilômetros de São Paulo, recebeu o título de Cidade Inteligente com base em normas internacionais e análise de 279 indicadores. No mundo, só 79 cidades ostentam essa condição.
— Não é só ter tecnologia. É fazer essa tecnologia trabalhar para melhorar a vida dos cidadãos — diz o prefeito, Anderson Farias (PSD).
Em mobilidade urbana, a cidade está implementando a Linha Verde, um corredor com 20 quilômetros de extensão, com 12 veículos elétricos, os VLPs, criados pela chinesa BYD e pela brasileira Marcopolo. Eles têm capacidade para 168 passageiros e rodam sem ruído ou poluição.
A tecnologia também está ajudando a reduzir índices de criminalidade e desmatamento. O Centro de Segurança de Inteligência (CSI) é um dos únicos do país. Trata-se de um sistema de mil câmeras potentes, de tecnologia chinesa, que monitoram a cidade 24 horas, em tempo real.
Elas conseguem localizar, por exemplo, o suspeito de um roubo com informações das características físicas e roupas. Também rastreiam com precisão a placa de um carro roubado e indicam seu trajeto.
— A região do Vale do Paraíba é violenta, mas São José apresenta os menores indicadores de criminalidade dos últimos vinte anos. Os furtos de veículos, por exemplo, caíram 66% – diz Peter Ribeiro, diretor do CSI.
Com a ajuda de satélites, a prefeitura consegue detectar o desmatamento. Pela sobreposição de fotos, as imagens apontam, por exemplo, corte de árvores em áreas de preservação ambiental.
Uma fazenda de energia solar em construção vai proporcionar uma economia de 30% na conta de luz dos prédios públicos. E semáforos inteligentes, através de um sistema do Google, rastreiam os celulares dos motoristas e ajustam o tempo de abertura, reduzindo os congestionamentos.
— E 85% dos serviços públicos da prefeitura estão disponíveis através de aplicativos — diz o secretário de Desenvolvimento Econômico, Alberto Marques Filho, lembrando que a cidade tem uma Lei de Inovação que estimula cidadãos a trazerem novidades para a prefeitura.
Robótica para inspeção
Outro polo de incentivo à inovação é o Parque Tecnológico do município. Reúne grandes empresas, start-ups, institutos de pesquisa e inovação, universidades, aceleradoras, além do cluster aeroespacial, que buscam sinergia para o desenvolvimento de novas tecnologias e negócios.
Já são 330 empresas que se relacionam com o parque. Há onze laboratórios de testes, e circulam por ali 5 mil universitários e 2,2 mil empregados.
Estão incubadas no parque start-ups como a Autaza, formada por ex-alunos do ITA, que utiliza robótica para detectar defeitos na carroceria de automóveis. O sistema está sendo testado pela General Motors, dos EUA. Já a Altave usa balões para fazer monitoramento de eventos e leva o sinal de Wi-Fi para área remotas. A empresa atuou na segurança das Olimpíadas do Rio, em 2016.
— De cada quatro ideias que chegam aqui, três viram negócios — diz Marques Filho.
SANTA RITA DO SAPUCAÍ (MG)
Vale da Eletrônica aproxima Estado, indústria e academia
Quem chega a Santa Rita do Sapucaí, no Sul de Minas Gerais, se depara com grandes plantações de café e muitas vacas pastando pelos campos. Mas 60% do Produto Interno Bruto (PIB) local saem das indústrias de tecnologia instaladas ali. A cidade ostenta o título de Vale da Eletrônica.
Aqui estão 170 empresas desse setor, de ramos tão distintos como eletrobiomedicina e telecomunicações, que movimentam R$ 3,6 bilhões por ano e geram 14 mil empregos. O município sempre teve vocação para inovação.
— Aqui foi fundada a primeira escola de eletrônica da América Latina, o primeiro curso de engenharia de telecomunicações do país e uma faculdade de Administração com foco em empreendedorismo de base tecnológica — conta o prefeito, Wander Wilson Chaves (União Brasil).
A aposta em educação garantiu a Santa Rita uma mão de obra altamente especializada, que fez florescer um ecossistema tecnológico, com startups que surgiram e se desenvolveram na cidade. Existem três incubadoras que abrigam atualmente quase 30 startups no município. Empresas de fora também foram atraídas por esse ambiente.
— Isso garantiu que a maior parte desses profissionais qualificados ficasse no município —diz Publio Teles, secretário de Ciências, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico.
Também foi criado um arranjo produtivo local, em que as empresas fornecem produtos umas às outras.
Atualmente, a Escola Técnica de Eletrônica (ETE), criada nos anos 1950, oferece cursos de programação de games e de energia de fontes renováveis. Na década seguinte, foi criado o Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel), a primeira faculdade de engenharia das telecomunicações do país. Hoje são sete cursos, que incluem engenharia biomédica e de software.
Há parceria e prestação de serviços a grandes empresas, que geram um faturamento de R$ 70 milhões por ano.
— Pelo menos 85% das empresas de Santa Rita nasceram na nossa incubadora — conta Carlos Nazaré, diretor do Inatel.
Internet do futuro
O instituto aposta em pesquisa de ponta e já começa os estudos do 6G, transmissão de dados via luz (fotônica) e internet do futuro. Para esta última iniciativa, criou-se um grupo de estudos, o Woca, que em português significa Acesso Convergente Óptico e sem Fio.
Eduardo Saia Lima, doutorando em telecomunicações, é um dos pesquisadores que atuam nos estudos da fotônica.
— Esses estudos são cruciais para se chegar à transmissão de dados cada vez mais rápidos em tablets, celulares e computadores — explica.
A parceria entre poder público, indústria e academia foi crucial para Santa Rita. Como de 80% a 85% das empresas são micro ou pequenas, elas acabam fechando acordos com ETE e Inatel para pesquisar e desenvolver tecnologias e produtos. A prefeitura, por sua vez, cede terrenos para empresas criadas ou que decidam se instalar na cidade.
A empresa de engenharia biomédica Ventrix, por exemplo, vai erguer uma sede própria ali. Passou pela incubadora da prefeitura e criou o primeiro eletrocardiograma do país que pode ser feito pelo celular, em que os dados ficam na nuvem e podem ser acessados pelos médicos, em teleconsulta e com diagnóstico remoto.
Em outra frente, a empresa acaba de lançar um curativo para feridas complexas, que vem sendo pesquisado desde 2007, e pode ser usado em casos de queimaduras. Custa quatro vezes menos que o mesmo curativo importado.
— Utilizamos inteligência artificial para o laudo do eletrocardiograma e já temos seis novos produtos em pesquisa para colocar no mercado — diz Roberto Castro Jr., doutor em engenharia biomédica e um dos fundadores da Ventrix.
Fernando Barbosa Mota e José Carlos Martins, ambos ex-alunos da escola técnica, fundaram a JFL, da área de segurança eletrônica. Além da fábrica em Santa Rita, abriram uma unidade em Manaus (AM), exportam para 16 países e não param de investir em pesquisa.
Pelo menos 40 engenheiros pesquisam e desenvolvem novos produtos. Este ano, o crescimento da empresa será de 20% e o faturamento deve passar dos R$ 150 milhões.
— Quase 100% da nossa mão de obra vem da escola técnica. Já desenvolvemos pelo menos 300 produtos — diz Barbosa.
PIRACICABA (SP)
O berço das ‘agtechs’ que mais crescem no planeta
Em um pequeno laboratório da EsalqTec, incubadora de empresas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) em Piracicaba (SP), há centenas de mudas de jequitibás, palmeiras (como a juçara) e plantas medicinais, algumas delas em vias de extinção. Elas são pequenos clones, cultivados in vitro por meio da técnica da biotecnologia.
— Trata-se de uma pesquisa com o objetivo de desenvolver mudas mais produtivas. No futuro, elas serão produzidas em escala — conta a pesquisadora Mariza Monteiro, fundadora da start-up Arbotec, responsável pela clonagem.
Em um laboratório ao lado, Ana Paula Justiniano, pós-doutorada em microbiologia, pesquisa como as bactérias podem fazer a descontaminação de solos atingidos por metais tóxicos e melhorar, assim, a fertilidade da terra para cultivo.
— É uma alternativa para a crise desencadeada pela guerra na Ucrânia, que está prejudicando as importações de fertilizantes russos — diz Ana Paula Justiniano, fundadora da start-up Justy Biosolutions.
Na área externa, um plantação de mirtilos, importados da Flórida, recebe irrigação de precisão, com a quantidade de nutrientes e água exigida pela planta. Eles são uma alternativa de cultivo para pequenos agricultores.
Estes são alguns exemplos das pesquisas de ponta em agricultura desenvolvidas na EsalqTec. Há outras cinco start-ups residentes e pelo menos 139 empresas associadas que se relacionam com esse ecossistema. O objetivo é tirar ideias do papel e transformá-las em negócios, sempre com olhos sustentáveis.
— A agricultura brasileira atravessa um processo muito forte de digitalização, que começou em 2015. O Brasil tem atualmente o maior movimento de crescimento agtechs (start-ups do agronegócio) do mundo. Hoje, as informações são transmitidas de forma muito rápida para que sejam tomadas as decisões mais eficientes — diz Sergio Marcus Barbosa, gerente executivo da EsalqTec.
Segundo o Radar Agtech, de 2020/2021, uma publicação da Embrapa que mapeia as start-ups do setor, o país tem 1.574 agtechs. O número é 40% maior do que o registrado na última edição da pesquisa, em 2019. O estudo aponta que São Paulo (com 345) e Piracicaba (com 60) estão no topo do ranking.
Etanol 2.0
Barbosa lembra que, antes da digitalização da agricultura, que começou em 2015, o país já tinha avançado na “tropicalização”. Pesquisas feitas nas universidades e na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) foram fundamentais para a conquista do Cerrado, por exemplo.
Há mais um polo de inovação para o agronegócio na cidade: o Parque Tecnológico Emilio Bruno Germek, de Piracicaba, fundado em 2012. Ali se misturam numa parceria multifacetada universidades, escolas técnicas, poder púbico, grandes empresas, incubadoras de start-ups.
Entre as grandes companhias que se instalaram dentro do parque está a Raízen, empresa que atua na produção de açúcar e etanol, distribuição de combustíveis e geração de energia.
A empresa mantém um hub de inovação no local, o Pulse, que desenvolve pesquisas em etanol de segunda geração. Só no Pulse, há pelo menos 35 empresas associadas desenvolvendo pesquisas em diferentes locais do país, e que concentram os resultados em Piracicaba.
— As empresas querem estar em um local de convergência de pesquisas e de soluções para o agro. Aqui tem tecnologia de ponta em vários setores, desde máquinas agrícolas mais eficientes até variedades de plantas mais resistentes — diz Flavio Castellari, diretor-executivo do parque, lembrando que há outros seis hubs de inovação ali, entre eles o Avance e o AgTech Garage.
Também há investimento em formação de mão de obra e quase 2 mil alunos circulam pelo parque, desde estudantes de técnicas em mecânica, de gestão empresarial e de engenharia florestal.
No núcleo da administração do parque, estão “incubados” 17 projetos em laboratórios, que estudam desde controle de pragas até análise de leite. A Clínica do Leite foi criada pelo professor da Esalq Paulo Fernando Machado. Depois de aposentado, ele decidiu empreender.
Hoje, sua empresa já analisa a qualidade de cerca de 50% das amostras de leite de todo o país. O resultado vai para um banco de dados e o produtor recebe em tempo real. Se há problemas, os técnicos sugerem as soluções, desde como alimentar melhor o gado ou melhorar a conservação do produto. A empresa também ajuda na gestão dos negócios.
— Este foi um projeto de pesquisa que aprimorei e se tornou um negócio — conta Machado.
RECIFE (PE)
Capital pernambucana faz revolução digital em duas décadas
Em pouco mais de 20 anos, o Recife antigo se transformou. Em uma região degradada do centro histórico da capital pernambucana, criou-se um dos polos de tecnologia mais importantes do país, o Porto Digital.
O foco das empresas instaladas é o desenvolvimento de software, e a produção mais relevante está voltada para celulares: atualmente quase todos os smartphones do Brasil contam com tecnologia desenvolvida no Porto Digital.
— Aqui há um arranjo entre o poder público, com isenção de Imposto Sobre Serviços (ISS), e empresas fomentando novos negócios. E a academia forma mão de obra qualificada — explica Pierre Lucena, presidente do Porto.
Em termos financeiros, as 350 empresas embarcadas neste polo de inovação já movimentam R$ 3,6 bilhões e empregam 15 mil pessoas. Das dez maiores, sete foram desenvolvidas numa das seis incubadoras. Entre elas, por exemplo, está a Insole, start-up de energia solar que já recebeu aportes da GP Investimentos, do bilionário Jorge Paulo Lemann.
— Um dos diferenciais da Insole é financiar, com capital próprio, o equipamento de energia solar, que gera cerca de 50% de desconto na conta de luz. Antecipamos parte dessa economia em dinheiro, que é depositado numa carteira digital, a Insole Pay. E o cliente pode gastar como quiser — diz Ananias Gomes, fundador da Insole, acrescentando que a empresa tem cerca de 7 mil clientes, entre pessoas físicas e jurídicas.
Outra empresa que nasceu no Porto foi a Tempest, de cibersegurança, que foi comprada pela Embraer. A japonesa NTT Data, que atua nos segmentos de telefonia e tecnologia, é a mais recente gigante a se instalar no porto.
Nos planos da empresa, estão a contratação de cerca de 700 pessoas até 2023, além de capacitar 22 mil pessoas para trabalhar com tecnologia, ajudando a reduzir o déficit de mão de obra.
Uma das iniciativas para formar mão de obra é pagar cursos voltados à tecnologia para estudantes com alto desempenho no Enem e que entraram na Universidade Federal de Pernambuco, em áreas diversas.
Trata-se de um curso oferecido pela PUC local, com programação e análise de desenvolvimento de sistemas, e uma das disciplinas é feita no próprio Porto, como uma aula prática. Dura dois anos e meio e o estudante precisa trabalhar nas empresas do Porto Digital primeiro. Se for para outro lugar, terá de devolver o dinheiro para a prefeitura.
FLORIANÓPOLIS (SC)
Ilha do Silício vira polo de profissionais digitais
Há tempos que o turismo deixou de ser a principal atividade econômica de Florianópolis. A capital catarinense transformou-se num polo de tecnologia no Sul do país e ganhou o apelido de Ilha do Silício (em alusão ao Vale do Silício americano, que é berço das gigantes globais de tecnologia) que abriga muitas start-ups e empresas globais do setor. O fato de não poder receber indústrias determinou o ponto de inflexão na cidade na busca de sua vocação tecnológica.
— Num movimento de nomadismo digital, muitos profissionais do setor vieram morar em Florianópolis, nos anos 1980, buscando qualidade de vida. Acabaram criando empresas e na primeira década dos anos 2000 essa base tecnológica já estava consolidada — diz Juliano Richter, secretário municipal de turismo, tecnologia e desenvolvimento econômico.
Atualmente, considerando a Grande Florianópolis, há 5,7 mil empresas e start-ups do setor, que têm um faturamento anual de R$ 8,5 bilhões. Richter lembra que o forte investimento em ensino e pesquisa das universidades e institutos técnicos ajudou a fixar essa mão de obra no município. Depois veio o incentivo fiscal, com a alíquota mínima de 2% do Imposto Sobre Serviços (ISS).
A cidade tem quatro centros de inovação e uma incubadora de startups. Dentro de um dos laboratórios de Associação Catarinense de Tecnologia (Acate), nasceu, por exemplo, a Equilibrium comprada pelo Grupo Boticário este ano. A empresa criou um sistema de inteligência logística digital que permite comunicação em tempo real com os clientes em relação a seus pedidos.
— Grandes empresas, como Weg e Engie, por exemplo, apresentam um desafio ao mercado e conectam as start-ups daqui para criar soluções de tecnologia — conta Iomani Engelmann, presidente da Acate, que lembra que a Totvs, multinacional brasileira de tecnologia, comprou por quase R$ 2 bilhões a empresa Resultados Digitais (RD), de marketing digital, que nasceu na incubadora da Acate.
O objetivo de Florianópolis é continuar no trilho da tecnologia. Por isso, a formação de mão de obra, que é deficitária em pelo menos 5 mil vagas em Santa Catarina, ganha força em parcerias entre a prefeitura, empresas, universidades e o governo do estado para cursos profissionalizantes com bolsas.
Além disso, os centros de inovação estão sendo replicados em 13 cidades catarinenses para gerar um ecossistema tecnológico fora da ilha.