XI – Idos de 1979 – primeiro emprego – primeiro salário – primeiros choques de realidade – José Jorge Andrade Damasceno

No ano em que foi fundado o jornal Correio da Bahia e, cerca de um mês após iniciar-se a sua circulação, este escrevedor começava a sua peregrinação em busca da sua inserção no mundo daqueles que eram encaminhados pelo Senai, para atuar como industriário. Ele, tendo recentemente completado dezoito anos, queria começar a ser contado entre os elementos formadores daquilo que os economistas denominam “população economicamente ativa”, vendendo a sua força de trabalho para a insipiente – e já frágil – indústria soteropolitana.

Talvez fosse a segunda ou terceira sexta-feira do mês de fevereiro, quando em meio a outros cegos que se dirigiram até as dependências do Senai, onde funcionava o Setor de Colocação de Mão de Obra vinculado àquela instituição dos industriais, ele lá estava, na expectativa de ser recebido por Manoel, que o entrevistaria e, quiçá, o encaminharia para alguma das vagas que houvesse, passível de ser ocupada por um moço que quase não levava na “bagagem” anteriores experiências de trabalho, exceto umas poucas semanas como embalador de açúcar e feijão, no depósito de um supermercado em sua cidade natal.

Naquela manhã, saíra cedo de casa, visto ainda estar domiciliado em Alagoinhas, distante 108 quilômetros da capital dos baianos, com o objetivo de chegar em tempo de ser recebido pelo sujeito que teria o “poder” de abrir-lhe as portas do ingresso no mundo dos assalariados. Depois de enfrentar a estrada e o trajeto urbano que o levaria ao salão onde outros pleiteantes também aguardavam alcançar o mesmo resultado, fora entrevistado pelo responsável por destinar as vagas de trabalho e, um tanto aliviado por não ter sido de todo desiludido, ouviu que voltasse, talvez após o carnaval, para que fosse encaminhado às dependências da fábrica onde iria atuar.

Era uma sensação nova que se experimentava, haja visto já ter estado naquele espaço do Senai destinado ao atendimento dos cegos que semanalmente para lá se dirigiam, no intuito de ter a sua demanda por emprego atendida por aquele que fora tido como capaz de dirigir o setor de colocação de mão de obra composta por pessoas cegas, para ser alocada na  indústria. Mas já se houvera passado cerca de cinco anos e, a visita fora feita apenas para que o rapazinho, ainda por completar quatorze anos, pudesse ter uma ideia do que seria o seu próximo passo, logo que completasse a maior idade.

No entanto, chegar no Senai, para procurar Manoel, a fim de se apresentar diante dele como sendo o mais novo pleiteante de uma vaga de trabalho na indústria de Salvador, era um momento no qual se transitava precisamente para a maior idade, em que se buscava iniciar o seu processo de “autoafirmação” tanto como pessoa útil para a sociedade e capaz de se bastar, quanto como homem, no sentido pleno do termo. Era, enfim, o momento em que estaria diante de um sujeito que sequer se lembrava que fora visitado uns poucos anos antes, para se colocar entre, talvez, as dezenas que já se encontravam por lá, há já algumas semanas, indo e voltando, muitas vezes não sendo recebidos e, em geral, quando recebidos pelo chefe do setor, obtendo dele – até mesmo de um seu preposto – a mesma resposta: volte na próxima semana; vamos ver o que conseguimos para você.

Após algumas semanas de vans investidas no intuito de ser encaminhado ao treinamento que acreditava receberia antes de ser levado ao efetivo exercício da atividade laboral como industriário; depois de algumas viagens debalde para Salvador, conforme era praxe do “venha semana que vem”, finalmente chega aquela que talvez fosse a última semana de março, , em atendimento a orientação dada na semana anterior, as oito da manhã lá estava, na sede do Senai, nos Dendezeiros de onde foi, enfim, levado até a sede da fábrica de biscoitos “Águia Central”, então localizada no final da Vasco da Gama, para ser treinado e inserido no seu corpo de funcionários.

Receoso e atento, ele foi levado até as dependências da referida empresa, logo sendo conduzido ao posto onde atuaria, juntamente com mais outros dois ou três colegas cegos, em atividade desenvolvida majoritariamente por mulheres, sendo os cegos, os únicos elementos do sexo masculino a atuar naquela última etapa da produção de biscoitos, o setor de embalagens.

Era aquele o seu primeiro emprego formal, com horário de entrada e saída, regido por relógio de ponto e, com remuneração fixa e registrada em carteira. Inicialmente atuou no primeiro turno de funcionamento da produção da “Águia Central”, tendo sido posteriormente alocado no segundo turno de trabalho e, por fim, um terceiro turno foi criado, entre as 22:h00 e as 06:h00, no qual atuou por mais tempo e onde obteve melhor remuneração.

Era o primeiro emprego, recebera o primeiro salário. Porém, eles se fizeram acompanhar dos primeiros choques de realidade. Logo se descobriu que o salário sequer era suficiente para se manter. A vaga em uma pensão que dividira com mais dois colegas, consumiria o seu primeiro salário e, ainda produzira restos a pagar com a remuneração do mês seguinte; não sobrara sequer para ajudar em casa. Nem mesmo para que pudesse consumir alguns produtos que acreditara consumiria…

A realidade lhe gritava na cara: ganhar até ganhar; mas o que ganha não é o bastante para que se faça “homem” independente e capaz de prover nem a si mesmo, nem a constituir família, ou mesmo prole… mal conseguia cumprir com o gasto que lhe mitigara a fome.

O melhor momento daqueles dias de empregado em uma fábrica de biscoitos, foi aquele em que o seu horário de trabalho fora o terceiro turno, excepcionalmente criado para atender a uma necessidade de um dos fornos ser submetido a uma grande reforma, que tinha um tempo determinado para a sua vigência. Ali, ao poder voltar para a casa onde era domiciliado antes de transferir-se para Salvador, portanto, aliviado do custo com estadia e alimentação, fora possível saudar as pendências na pensão e dar alguma contribuição em casa. Por não ter despesas com transportes, pudera ir e vir após as atividades laborais, o que lhe permitira uma aparente melhoria na remuneração, uma vez que alguns adicionais eram acrescentados ao salário mínimo percebido, cujo valor nominal era de Cr$2.268,00.

Assim, uma outra descoberta propiciada pelo choque de realidade, foi a de que o trabalho não dava prazer, mas era desenvolvido pela necessidade. As 8 horas de trabalho em pé; as semanas e meses de rotinas marcadas pelo quase automatismo de sua execução, era a tônica daquele labor que, contrariamente ao esperado, não proporcionava o necessário para a sua subsistência e a cooperação econômica para com os seus.

Uma outra constatação, esta um pouco mais tardia, era a de que o grande momento de acesso dos cegos aos postos de trabalho no parque fabril de Salvador, já estava em franco processo de desaceleração. Isto é: o rapaz recém chegado com o fito de tomar parte naquela “epopeia” já chegava no instante em que se aproximava o fim da feira e, só rebotalhos de postos de trabalho, era o que sobrava para ser oferecido aos chegantes. Os melhores produtos daquela feira já se tinham acabado ou, estavam reservados aos melhores, aos mais estimados e mais experientes fregueses.

Mas, como a reforma do forno fora completada na data aprazada, o terceiro turno foi suprimido e o operário não mais pôde voltar a atuar em qualquer dos turnos, visto ter que residir outra vez na capital, o que ficou inviável. Os preços dos pensionatos eram incompatíveis com a sua remuneração. Logo, teve que ser concluída a experiência do primeiro emprego, que acabaria por ser o único, em um intervalo de pouco mais de uma década e meia.

Outra tentativa fora envidada. Mas, praticamente pelas mesmas razões que levaram à interrupção da primeira, aquela sequer foi iniciada. Com a apresentação marcada para 31 de dezembro de 1979, o ingênuo aprendiz de operário compareceu na data acertada e, ao chegar na fábrica, embora em funcionamento, o setor que o receberia estava fechado, o que impediria de o receber e proceder aos trâmites de sua nova admissão.

Terminava assim, de forma tão abrupta, aquela primeira experiência de trabalho mediado pelo Setor de Colocação de Mão-de-Obra operacionalizada por Manoel Dias, como era chamado pela maioria daqueles que o procurava em busca da dita “colocação”.

Assim, uma vez desempregado e sem mais outra perspectiva de voltar ao “clube” dos “economicamente ativos”, devido ao fato de não ter recebido qualquer habilitação técnica, no sentido de enfrentar as novas tendências tecnológicas que marcariam o trabalho industrial, as grandes expectativas criadas por aquele rapaz, fundamentada no desejo de ser “homem”, conforme insistentemente lhe dizia sua mãe – para quem ser Homem era ter um trabalho -, ia-se pouco a pouco se desfazendo em uma realidade cujo solo se tornava cada vez mais árido, áspero, erodido e estéril. Os horizontes de sua vida laboral se tornavam cada vez mais carregados de nuvens densas e prestes a desencadear violentos vendavais, situação que ia se espraiando para os demais setores do seu viver. Não foi sem razão, que a música que lhe marcara profundamente o espírito, naquele ano de 1979, em meio às muitas incertezas que lhe inundaram o cérebro e que quase o levara a abraçar o ceticismo, fora “Noturno”, esplendidamente interpretada por Raimundo Fagner.

https://youtu.be/P0trioZqLcE

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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