VI. – Quando a Feira era “do pau” e o café era servido com liberalidade – Alagoinhas 1969-1981: algumas notas memorialísticas – José Jorge Andrade Damasceno

Tendo acabado de completar os seus cento e setenta anos de emancipação político-administrativa, em sua trajetória histórica, Alagoinhas construiu marcas indeléveis no imaginário dos seus moradores, que teimam em se manter vivas a despeito dos anos e das mudanças na configuração espacial da cidade. Esclareça-se que, a data aqui considerada é a aquela em que se deu a publicação do decreto provincial que eleva a freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas à categoria de vila, emancipando-a da jurisdição de Inhambupe: 16 de junho de 1852.

Mas, é preciso que se diga, que  o referido “teimar”, se deve em grande medida, ao esforço feito por pesquisadores que se tem debruçado sobre escassa, dispersa e muitíssimo mal conservada  documentação quase sempre em condições extremas de insalubridade, na busca de elementos que lhes permitam desenvolver a construção analítica do caminhar da sociedade, da economia e da política alagoinhense. Neste costurar de elementos geoespaciais, personagens, estruturas sociais e econômicas, se poderia citar, apenas à guisa de exemplos, pesquisadores do quilate de Keite Lima, Raimundo Nonato Pereira Moreira, Moisés Leal, Ede Ricardo, Eliana Batista, – mesmo este escrevedor que aqui arriscará desenvolver algumas leituras em forma de textos ensaísticos acerca de Maria Feijó, sua mais decantada literata e personagem que ainda habita vivamente no imaginário de muitos alagoinhenses -, entre tantos que desenvolveram trabalhos historiográficos cujo objeto era algum “devir histórico” da urbe que já avança no terceiro quartel do seu segundo século.

E, como já se disse, isto também se deve ao trabalho de memorialistas que descreveram e cantaram a “cidade da laranja”, trouxeram ao público com leveza e elegância, muitos elementos espaciais que ficaram entranhados no seu rememorar, que, em grande parte dos casos, não reste mais do que alguns vestígios em forma de fotografias e imagens descritas por gente da estirpe de Salomão Barros, Naylor Bastos, Joanita Cunha, Maria Feijó de Souza Neves, Iraci Gama Santa Luzia, José Olívio Paranhos, Lázaro Zacariades, Antônio Mário dos Santos, dentre outros alagoinhenses que se deram ao trabalho de divagar sobre os “lugares de memória” que tanto os impressionara e influenciara em seus “rememorares”.

A formulação “Lugares de memória”, aqui é entendida de acordo com a proposição do historiador francês Pierre Nora, em uma obra já clássica que organizou em sete alentados volumes entre 1984 e 1987 Intitulado “Les Lieux de Memoire. Para o presente texto, será utilizado um fragmento publicado no Brasil em 1993, na revista Projeto História – Entre História e memória: a problemática dos Lugares. Nele, Pierre Nora, entre outras coisas, afirma que:

“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. […]. Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade. Daí o aspecto nostálgico desses empreendimentos de piedade, patéticos e glaciais. São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por princípio; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos”. (Nora,1993, p. 12).

Mais adiante, para os fins que aqui interessam, o autor assegura que

“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. […] (Nora, 1993, P. 13).

Considerando-se o arrazoado exposto acima, Alagoinhas  é uma cidade prenhe destes “lugares de memória”, embora em grande parte, muitíssimo mal preservados, visto que, apesar de se ter feito alguns esforços no sentido de chamar a atenção dos poderes públicos para a conservação deles, não tem havido, independentemente da pessoa e/ou grupo político à frente dos destinos do município, grande preocupação que resulte em medidas efetivas para que sejam reduzidos os efeitos deletérios do tempo e das condições ambientais – para além do “vandalismo” e da especulação imobiliária, que aceleram o processo de descaracterização daqueles “lugares de memória”.

Uma boa parte de tais “lugares de memória” sofre a ação dos agentes econômicos e imobiliários que, sem qualquer interesse em algum tipo de conservação, fazem alterações e, quase sempre, reconstruções de prédios, espaços de sociabilidade e de “rememoração”, sem quaisquer escrúpulos, a não ser aqueles que os movem: a grana, que no dizer de Caetano Veloso “ergue e destrói coisas belas”. Ao que parece, neste aspecto específico que envolve a luta pela conservação dos “lugares de memória “da urbe alagoinhense, é o lucro a qualquer custo que preside o agir daqueles que se apresentam como os “agentes do progresso”, ou como os “atores do desenvolvimento e da modernização” da cidade.

Como exemplos da diversidade dos “lugares de memória” encontráveis na paisagem urbana de Alagoinhas,  além da já mencionada “imponente estação São Francisco, em cujas dependências se encontra o rico acervo da Fundação Iraci Gama” e, na perspectiva apontada nos trechos de Pierre Nora transcritos acima, pode-se apontar o “Cemitério da Praça da Saudade”, o bem conhecido “Pau Pintado”, o “mercado do artesão” (que por algum tempo foi o “mercado da carne”), a “Praça Castro Leal” onde por algum tempo funcionou o terminal dos transportes coletivos – que, sofreu um processo que os gestores chamam de “requalificação”, o “Tênis Clube” e o “Clube Acra” – que, entre outros como a Euterpe e a Siciliana, foram os espaços privilegiados de sociabilidade da “elite” alagoinhense -, a também conhecida  “Igreja Inacabada”, que tem sido  alvo de vários estudos em diversas áreas do saber, o prédio onde hoje funciona a “biblioteca Maria Feijó”, que, para este escrevedor, é um “lugar de memória” par Excelence, pois lá funcionou por mais de vinte anos a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas. Ali este aprendiz de escrevedor fez a formação em história, que o permitiu estar a “garatujar” o texto que agora o leitor tem sob o seu escrutínio.

Ainda se poderia mencionar o local onde se desenrolava o processo de torrefação e de comercialização do café “O Barão” – o seu cheiro podia ser sentido em toda aquela área e, de acordo com os ventos, avançava para outros pontos da cidade (por muito tempo, este café maníaco sorveu aquele delicioso cheiro de café torrando, a partir do Brasilino Viegas, escola onde estudara). Em um prédio localizado na rua Francisco Batista (em dois lugares daquela mesma rua: a loja inicial era um pouco abaixo da última), por muitas e muitas tardes, este escrevinhador apreciara incontáveis xícaras de bom café, ainda quando a cortesia da casa era disputada com outros degustadores daquela apreciável infusão. O local era frequentado por feirantes, comerciantes, políticos e outras autoridades da cidade, o que dava um caráter “democrático “àquele “lugar de memória” e de sociabilidade, pouco encontrável em outros espaços da cidade. Talvez, um dos lugares de memória de Alagoinhas que tenha experimentado um tal grau de sociabilidade, fora o estádio municipal Antônio Carneiro, onde memoráveis partidas de futebol se desenrolaram, envolvendo os principais times da capital baiana – Bahia e Vitória -, em apoteóticos enfrentamentos com o Atlético de Alagoinhas – que ora já se tornou praticamente um dos “lugares de memória” -, além de pelejas envolvendo grandes clubes brasileiros, como o Flamengo carioca e o Corinthians Paulista.

E, enfim de contas, o que dizer do “Estadual”, da “Senege/Senec”, do “Ginásio de Alagoinhas”, do “Santíssimo Sacramento”, da “Farda Branca”, da “agência” – lugar de onde se chegou e se partiu por um bom par de anos, fazendo as vezes de rodoviária da cidade -,entre vários outros cantos e recantos da urbe alagoinhense, segundo os “lembrares” de cada um dos que leem estes “garatujes” eletrônicos?

Entretanto, para chegar ao que foi proposto no título deste arrazoado, seria preciso incorporar ao seleto grupo em que, por meio da “memória”, as pessoas se reencontram com um momento de sua vida ou muitos dentre eles. Está se falando aqui, dos espaços e imóveis encontrados ao longo dos quarteirões para onde a feira foi transferida, juntamente com o conjunto urbano daquela Alagoinhas recém elevada a Vila, para se encontrar com “os trilhos” da ferrovia que tanto desejara a sua liderança. É evidente que os imóveis e espaços que este escrevedor conheceu e/ou frequentou nos marcos temporais estabelecidos na primeira linha deste arrazoado, já estavam bem diferentes daqueles existentes quando os feirantes foram obrigados a descer ao aludido encontro dos trilhos. O que aqui será apontado se relaciona diretamente com a memória  construída a partir dos ires e vires deste autor àquelas paragens, entre os anos de 1969, quando iniciou o seu processo de escolarização e o ano de 1981, quando interrompeu o seu cotidiano de frequência semanal aos cultos na então Primeira Igreja Batista de Alagoinhas, quando dela se desligara.

Portanto, aqui se quer falar do conjunto de açougues que se encontravam desde a esquina da rua Pedro Pondé com a Castro Leal e chegavam até ao armazém de Jorge Campos, intermediado pelo espaço ocupado por um lugar de drinques  e lanches, ali estabelecido, onde este então jovem rapaz, tomara solitariamente algumas “cubas”; atravessando a rua e transitando na calçada onde funcionara por muito tempo a “casa da Revista” e o seu cheiro característico, sentido ao passar diante das suas portas, até chegar a esquina onde funcionara a agência do “banco do nordeste” – lugar onde por muitos anos esmolara um velho cego que procurava amolecer o coração dos passantes com a sua ladainha verbalizada em voz rouca e sentida “o cego lhe pede uma esmola, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo!”; como não falar do supermercado “Paradellla”, com os cheiros e os ruídos vindos do seu interior; já na última calçada que se precisava vencer para chegar ao Brasilino Viegas onde este autor estudou e ao prédio da Primeira Igreja Batista onde ele congregou, precisaria passar por um outro conjunto de açougues, sendo que, ao lado esquerdo deles, eram colocadas algumas capoeiras com aves em constante reboliço e, mais adiante, naquele mesmo passeio, havia um depósito de bebidas, cujo cheiro que exalava não deixava dúvidas de qual era o objeto de sua atividade comercial, além de uma farmácia e um outro depósito, desta vez, o cheiro que vinha do seu interior era o de querosene, combustível ainda bastante utilizado na iluminação de muitos lugares de habitação, inclusive, é provável, nas casas de lona e madeira que se erguiam teimosamente ali, nos fundos do Brasilino e adjacências.

Como é fácil depreender, muitos homens e mulheres passaram por aqueles espaços, imóveis e barracas, ao longo de mais de cem anos, nos seus diversos afazeres e labores: compradores e vendedores, carregadores, fiscais e prepostos “da lei”, todos os tipos de gente, oriundas dos mais diversos pontos da cidade, ou mesmo dos muitos vagares pela cidade. Eram homens e mulheres que, por vezes, pareciam “trapos humanos”, “farrapos” de existências quase sem sentido. Naquele grande espaço de sociabilidade, os comerciantes instalados nos seus “armazéns”, os alunos e os professores em duas escolas que fizeram parte daquele ambiente humano, os crentes e pastores daquela Igreja protestante, encravada em meio a um espaço de circulação de “almas enfermas” – para as quais deveria atuar como “a luz na escuridão – e, até mesmo “o Alagoinhas jornal” – cujo prédio era instalado ali ao lado – e seus jornalistas, cruzavam e/ou conviviam diariamente e/ou semanalmente com “os vivos quase mortos” que gravitavam por ali.

Assim, é preciso ter na devida conta, conforme o leitor já é capaz de perceber,  o fato de que aquele espaço era um lugar de convivência de uma quase infinita gama de gentes marginalizadas, tanto do ponto de vista econômico, quanto e, sobretudo, do ponto de vista social. A “feira do pau” abrigava “doidos” folclóricos, como “Maria Café Quente”; também alguns deles por lá circulavam, como era o caso de “Jairo” e, o tão temido “Zé Paulo”. A propósito deste último, uma leitora do blog onde este texto foi publicado pela primeira vez, se reportou ao episódio em que ela mesma fora atacada por “Zé Paulo”, quando voltava de cumprir uma tarefa que lhe fora atribuída por sua genitora: fora na “feira do pau” comprar cachaça para que, com ela, fosse preparado o “licor de São João”. Voltando já com a dita cachaça, fora atacada por “Zé Paulo” com um “pau” que lhe quebrou a garrafa e, claro, também se foi o seu conteúdo.

Também este escrevedor lembra de um episódio, dentre outros tantos, protagonizado por aquele morador da “feira do Pau”. Havia uma forma de provocar-lhe a ira, que era gritar o seu nome, de maneira alongada… “Zé Pauloooooooo”. Um dia, os responsáveis pelo portão da escola Brasilino Viegas não os fecharam e, de dentro da escola, alguém gritou o nome dele, do modo que o enfurecia! O dito partiu para dentro da escola, com o objetivo de pegar aquele ou aqueles que o “arreliavam” …. Foi uma correria! Salas trancadas/escoradas como se pôde; direção e portas centrais fechadas há muito custo… Até que o enfurecido “ZéPaulo”  foi contido e o gaiato zombador foi identificado e punido…

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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