Um erro de registro que virou Silvio Santos – Leão Serva

A exposição do Museu da Imagem e do Som (MIS-SP) sobre a trajetória de Silvio Santos, da infância dura à posição de ícone maior da TV brasileira, é uma experiência enriquecedora para todos os gostos: quem se interessa por história, empreendedorismo, mídia, música brasileira, televisão e até para quem simplesmente gosta (ou não) de seu personagem principal.

No momento em que a TV aberta, como a conhecemos, vive uma crise profunda, junto com os jornais e demais meios pré-internet, é interessante acompanhar os passos decisivos de um homem que ajudou a construí-la e que usou o espírito empreendedor para passar de empregado de sucesso a dono de emissora.

Há episódios de improvisação e acaso na trajetória do empresário-apresentador que despertam impressão de predestinação. A começar pelo nome: Silvio não é Silvio e nem mesmo Santos. O nome nasce de um erro de registro, como destaca a mostra logo no início.

O casal Alberto e Rebecca Abravanel, pais de Silvio, mudou-se para o Brasil vindo de Tessalônica (Grécia) fugindo da instabilidade na região a partir dos anos 1920, depois da queda do Império Otomano (1918), da guerra Greco-turca (1921-22) e do clima antissemita entre os gregos.

O mais famoso ancestral de Silvio, Abravanel, era um grande intelectual judeu português do fim da Idade Média; depois de se mudar para Espanha, tornou-se uma das principais referências de fortuna e poder político nos anos finais da guerra dos “Reis Católicos” para expulsar os conquistadores mouros que dominaram a região por mais de meio milênio. Ao final da reconquista da península, em 1492, no entanto, os reis Fernando e Isabel decidiram expulsar da Espanha todos os judeus como se eles fossem parte dos invasores (a presença judaica na região era anterior ao nascimento de Cristo). Ofereceram ao seu benfeitor Isaac Abravanel que ficasse no país. Ele se recusou e liderou a grande fuga de dezenas de milhares de judeus para outros países. Muitos morreram. Foi uma das maiores migrações forçadas de população da história e marcou profundamente a visão de mundo dos judeus.

A família de Abravanel se implantou em Tessalônica, hoje parte da Grécia, mas que então fazia parte do Império Otomano, onde os judeus não enfrentavam resistência. Ali, suas gerações viveram por cerca de 400 anos gozando do respeito dedicado aos nobres e falando o ladino, uma variação do espanhol falada pelos judeus. É só um sinal de seu status o fato de que os homens eram tratados como “dom” Fulano ou “Senhor” Beltrano, como costumava-se chamar os príncipes e reis e até hoje tratamos os membros da hierarquia católica, como bispos e cardeais.

Foi por isso que, pouco depois de chegar ao Rio nos anos 20, ao fazer a certidão de nascimento do filho mais velho, Alberto Abravanel pediu ao cartório o registro do menino que deveria se chamar “Dom Isaac Abravanel”. O pai estrangeiro e o burocrata brasileiro não conseguiram ultrapassar a barreira das línguas: o oficial entendeu que o nome desejado era “Dom” e explicou que ele não existia no Brasil. O pai, propôs “Señor Isaac”. O oficial topou “Senor” (sem o til, a palavra não quer dizer nada e não remete ao título respeitoso). O pequeno Abravanel ganhou como nome um tratamento respeitoso com erro de revisão… O pai se resignou, foi para casa, contou o nome do filho à mãe, que não gostou e decidiu que o chamaria de “Silvio”.

Assim, o nobre filho dos Abravanel empobrecidos, que deveria se chamar Isaac, se tornou Senor, mas era chamado Silvio…

Apaixonado pelos programas de rádio, o adolescente Abravanel se candidatava em concursos de calouros e locutores, sempre como Senor Abravanel. Um dia, achando que o nome era um empecilho, registrou-se “Silvio Santos”.

Dava início a uma trajetória que pareceria ficção se não fosse verdadeira e se qualquer brasileiro não pudesse conferir, a cada domingo, sua longa maratona de trabalho, que hoje parece normal, mas nunca foi: o programa Silvio Santos é uma invenção genuína do “Dom Isaac Abravanel” renascido nos trópicos para manter-se como referência na vida de mais um país.

Não consta da exposição, mas no Brasil provinciano do final dos anos 60, as principais audiências de TV em São Paulo eram o programa de entrevistas de Hebe Camargo, na TV Record, e a maratona de Silvio Santos, nos domingos da Globo. Hebe decidiu entrevistar Silvio. E nos dias seguintes toda a cidade comentava, como se fosse uma gafe, a pergunta que ela fez: em meio a tantas horas de programa, você não tem vontade de fazer xixi?

Silvio era a alternativa paulista ao carioca Chacrinha. Não ter tempo de ir ao banheiro era mais um sinal de sua vocação workaholic. De terno, em vez de fantasias tropicalistas, ele concedia prêmios para os melhores em concursos que ajudavam a realizar sonhos de classe média, um padrão inteiramente oposto ao animador carioca que jogava bacalhau na plateia.

Mas nem todo esforço do mundo teria feito o que o acaso de um erro de registro providenciou: o nome complicado, que gerou um apelido simples, e conquistou o Brasil.

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SILVIO SANTOS VEM AÍ
Exposição sobra vida e a obra do empresário e apresentador de TV. Museu da Imagem e do Som (MIS): Avenida Europa, 158, Jardim Europa, São Paulo. Terça a sábados, das 12h às 21h; domingos e feriados: das 11h às 20h. Ingressos: R$ 12 (R$ 6 a meia); terças: de graça.

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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