Ucrânia, xadrez de cinco – Pedro Luiz Rodrigues
Até recentemente, o establishment acadêmico do mundo ocidental parecia ter eleito a China como a principal ameaça à estabilidade das relações internacionais. Esse sentimento acentuou-se a partir de 2013, depois que o país asiático demarcou, unilateralmente, uma zona de defesa aérea sobre o Mar da China. Não têm sido poucas as análises que aventam a hipótese de que a rearrumação estratégica chinesa possa conduzir a confrontos bélicos.
Mas agora, outra vez, as atenções dos analistas voltam-se para a Ucrânia e suas relações com a Federação Russa, onde atores e cenários há tempos distanciados do palco principal ressurgem como os principais protagonistas.
Incomodado com os arroubos independentistas do país vizinho, Moscou entrou em cena com linguajar e comportamento truculentos, próprios dos anos da Guerra Fria.
O governo de Putin fala grosso e ameaça recorrer ao poder militar para impedir que a Ucrânia saia de sua área de influência. Washington reage, advertindo que se uma intervenção militar na Ucrânia “terá consequências”.
Mas as similaridades com o período da Guerra Fria são apenas gestuais. A Guerra Fria era, em sua essência, bilateral ( EUA x União Soviética), num mundo que a China era apenas um ator secundário e a Europa muito mais dependente dos Estados Unidos.
O que para a Rússia está em jogo na Ucrânia é uma questão estratégica secular. Trocando em miúdos, teme que o namoro dos ucranianos com a União Europeia acabe por completar o desmantelamento de sua influência e da expressão estratégica no cenário internacional. Em particular, os russos temem perder o porto de Sebastopol, na Crimeia, o único porto de “águas quentes” em que podem manter ancorada parte de sua frota.
Há dias, o ex-Consultor de Segurança Nacional dos EUA (governo Jimmy Carter) Zbigniew Brzezinski comparou a situação da Ucrânia a um jogo de xadrez jogado a quatro mãos: a da Rússia, de um lado, e do outro as dos Estados Unidos, da União Europeia e da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). É um jogo de três contra um. E cada movimento do Ocidente só faz encurralar mais e mais a Rússia.
Hoje, na verdade, há um quinto e muito importante parceiro nesse tabuleiro: os próprios ucranianos.
Em seu livro “O Grande Tabuleiro” (The Grand Chessboard), Brzezinski observou que “sem a Ucrânia, a Rússia se tornaria um estado imperial predominantemente asiático, com envolvimento estratégico limitado à Ásia Central. Mas se Moscou conseguir manter a Ucrânia e seus recursos sob seu controle, a Federação Russa pode manter e reforçar seu status estratégico global. Os americanos ainda têm uma outra preocupação: a de que russos e alemães venham a se entender, abrindo caminho para um acordo entre a Europa e a Rússia, cujo resultado seria diminuir a expressão dos EUA na região.
O voto unânime do senado russo, ontem, autorizando a intervenção militar na Ucrânia ,era previsível. A questão é que se partir da palavra para a ação, Vladimir Putin estará violando dois acordos internacionais, como observa o historiador britânico Timothy Snyder. Um, assinado com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha em 1994 de respeitar a independência ucraniana em contrapartida de a Ucrânia abrir mão de seu arsenal nuclear.
Outro, de 2010, com a própria Ucrânia, para a manutenção da base militar russa em Sevastopol, onde está acertado que os militares não poderiam sair do perímetro da base. A Ucrânia, por sua vez, colocou suas Forças Armadas em estado de alerta, e avisou que reagirá à altura no caso de uma invasão russa.
Mas a ameaça russa não é meramente militar. Em dezembro passado, os russos concederam à Ucrânia um grande desconto nos preços do gás, como parte de um pacote de assistência econômica de 20 bilhões de dólares. Pelas regras do entendimento, o preço do gás deve ser renegociado a cada três meses.
A estatal russa Gazprom já advertiu que poderá elevar os preços do gás que fornece à Ucrânia se o país não pagar imediatamente suas dívidas para com a empresa, no valor de US$ 1,5 bilhão.
Entre as palavras e declarações à ação há um abismo. Não há, nos governos ou no mundo acadêmico quem saiba o que vai ocorrer nos próximos dias. É esperar para ver.
Fonte: Blog do Noblat