Simpatia do brasileiro é um mito, diz sociólogo Manuel Castells
Para Manuel Castells, 73, a agressiva polarização política que se vê hoje nas redes sociais “desconstrói o mito do brasileiro simpático”. O sociólogo espanhol esteve no país durante os protestos de junho de 2013, e acrescentou a seu livro “Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Era da Internet” (ed. Zahar) um posfácio em que analisa os recentes acontecimentos no Brasil.
Professor da universidade da Califórnia, Castells participou, na semana passada, do Fronteiras do Pensamento na Bahia. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista concedida à Folha, em Salvador.
Karime Xavier-11.jun.13/Folhapress | ||
O sociólogo espanhol Manuel Castells durante palestra em São Pauo, em 2013 |
Folha – Em 2013, o sr. disse que nosso grande problema era político, não econômico. E agora, que nossa economia tampouco anda bem?
Manuel Castells – Quando aponto a questão política me refiro a uma crise mundial dos sistemas tradicionais de democracia representativa, por conta da corrupção, agora mais exposta porque as pessoas têm mais acesso à informação e mais capacidade de organização por conta da internet.
O sistema político brasileiro está mal como estão mal todos os sistemas do mundo. Há protestos e desgaste dos partidos tradicionais, além da aparição de correntes populistas de extrema-direita e de extrema-esquerda.
Na Espanha, em Portugal e na Grécia, a reação é de esquerda. Na França, na Inglaterra e na Alemanha, é de direita.
O que causa essa crise de representatividade?
Os cidadãos deixaram de aceitar que sua capacidade política seja um voto a cada quatro anos. Há uma insatisfação com toda a classe política. E isso não significa que se acredite que todos os políticos sejam corruptos, mas sim que há uma classe política que está separada da cidadania, que é formada por profissionais que têm um interesse comum: o monopólio da política da corrupção.
Essa é a raiz do problema no Brasil, mas não só. Nos últimos anos vimos que afundou o sistema político italiano, espanhol, grego, está afundando o da Argentina, o do México. É algo mais profundo.
Qual a especificidade do Brasil, então?
Está ocorrendo a tempestade perfeita. Junto a essa crise de representatividade, uma piora da economia. Houve um período de bom crescimento com redistribuição. Mas a desaceleração da China fez com que ficasse difícil manter o mesmo alto nível de gasto público. E então ressurgiu a inflação, que já sabemos que foi um câncer para a economia e a sociedade brasileira em outras épocas.
No momento em que o governo atual percebeu que poderia haver um aumento da inflação, deveria ter restringido o gasto público, e não o fez.
O sr. tem estudado comparativamente protestos recentes –além do Brasil, os casos do Occupy (EUA), da primavera árabe, do Chile, do México e outros–. O que têm em comum?
O fato de não se tratarem de movimentos programáticos, mas emocionais, e de surgirem espontaneamente. Essa indignação inicial permite que se amplie a temática do movimento. A palavra “dignidade” se repete em todos eles. E por quê?
Porque as demandas não são concretas. Ainda que existam problemas concretos. O que as pessoas pedem é reconhecimento.
A primavera árabe começou com a autoimolação de um vendedor ambulante que não suportava mais o tratamento das autoridades municipais.
Um protesto pela dignidade inclui a luta contra a pobreza, mas é algo mais. É a tradução dos direitos humanos na consciência individual.
Seja na favela, seja como um profissional ou empresário, os indivíduos não sentem mais que as instituições os representam.
Em sua opinião, quais as principais diferenças dos protestos no Brasil em 2013 e 2015?
Em comum têm a denúncia da corrupção e o sentimento de que há demandas dos cidadãos que não podem se expressar nos atuais sistemas políticos.
O movimento de 2013 era popular, jovem, e partiu de demandas concretas, mas imediatamente levantou o tema da dignidade. E teve êxito, pois anulou-se o aumento das tarifas. O movimento no Brasil causou a reação política mais positiva de um governo no mundo.
A presidente Dilma Rousseff se conectou com ele. Mas o aparato do PT bloqueou a possibilidade de reforma.
Marina Silva deve seu fugaz êxito na campanha eleitoral justamente por ter se identificado com a crítica que se fazia nas ruas. Porém, não pôde resistir à ofensiva publicitária do PT e ao fato de que seu fundamentalismo evangélico não caiu bem entre a classe média intelectual.
Considero significativo que duas pessoas que disputaram a Presidência do Brasil –Marina e Dilma– haviam respondido positivamente ao movimento.
Já em 2015, é a classe média e média alta quem vai às ruas. E chegou-se a pedir a impugnação da presidente.
O grupo que pede um golpe de Estado é pequeno e considero impossível que isso ocorra. Mas o significativo é que existam cidadãos e políticos que o queiram.
2013 e 2015 se conectam com as recentes manifestações em outras partes do mundo porque mostram que a sociedade que quer expressar-se, hoje em dia, se expressa em movimentos espontâneos, coordenados pela internet, e presentes na rua.
Essa é uma transformação completa, não digo se é boa ou má, apenas digo que é uma transformação. As instituições clássicas não são capazes de representar a diversidade da sociedade. Às vezes é pela esquerda, às vezes pela direita, às vezes são jovens, às vezes são de idade madura, mas o comum a todos é que não creem na possibilidade de representação institucional, têm de conectar-se pela internet e sair às ruas.
E por que o brasileiro tem a sensação de que, na internet, há demasiada violência e intolerância no debate?
A internet é um instrumento de comunicação livre. Portanto, causa curto-circuito às instituições e ao poder do dinheiro.
A comunicação social estava monopolizada até hoje ou pelo poder político, ou pelo poder econômico. Agora, a internet permite às pessoas comunicar-se diretamente sem passar por esses controles, e sem passar por qualquer censura. Ainda que se queira controlar a internet, não se pode.
Eu não creio que no Brasil, com a internet, exista mais agressividade no debate. O Brasil sempre foi agressivo. Nos tempos da ditadura, no final dos anos 60, anos 70, o debate não só era agressivo como se torturavam pessoas diariamente com impunidade.
A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata. Esse é o Brasil que vemos hoje na internet. Essa agressividade sempre existiu.
A única coisa que a internet faz é expressar abertamente o que é a sociedade em sua diversidade. Trata-se de um espelho.
Como hoje não precisam passar pelos meios tradicionais de comunicação, as pessoas aparecem como realmente são.
A pergunta fundamental é: a liberdade é um bem em si? Se dizemos que sim, então a internet é uma tecnologia de liberdade, e portanto realiza uma mudança histórica. Mas é preciso aceitar que liberdade é também para coisas de que não gostamos. É para todos. Portanto, se ali se articulam formas de violência, racismo, sexismo, é porque isso existe na sociedade.
Na internet, um racista ou um sexista pode facilmente encontrar outros racistas e sexistas que, em seu entorno social, não podem se declarar abertamente assim. Na rede, não há constrangimento e se abre a possibilidade de expressão espontânea da sociedade.
E o que ocorre? Nos damos conta de que a sociedade não é tão boa e angelical como gostaríamos que fosse.
Vemos que, na verdade, a sociedade é bastante má. No Brasil e em todos os outros países.
E de quem depende a mudança social nesse novo contexto?
Certamente, não será da internet, mas sim dos sujeitos da mudança. Se estes querem um golpe militar, a internet facilita a organização desses sujeitos.
A internet é agnóstica, expressa o que somos. E o que somos depende da cultura. Repito, não creio que o Brasil seja pior agora, ou que a rivalidade política esteja mais intensa nesse momento do que foi antes.
No Brasil, a desigualdade diminuiu, mas ainda é muito grande. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso dizia que o Brasil não era pobre, mas sim injusto. Concordo. Há uma imensa riqueza, controlada por 1% da população. Como é que a sociedade não vai estar com com raiva? E há, também, um grupo de classe média que está descontente porque se tira deles alguns recursos para redistribuir.
Trata-se de uma classe média profissional, que teme perder seus privilégios e que vive melhor que seus pares nos EUA e na Europa. Quem pode ter dois ou três empregados domésticos permanentes, vivendo em casa, ou constantemente indo e vindo? Nenhuma classe média do mundo! Pode-se ver famílias com empregados domésticos em outros países, mas em número pequeno. Empregados domésticos como massa importante, só no Brasil.
A descrença no Estado tende a gerar para-Estados ou Estados paralelos, que se expressam na formação de milícias e de uma justiça civil, como no México, ou terrorista, no caso do Estado Islâmico?
O México se transformou de fato num narcoestado. Há uma guerra civil ali, e ressurgem leis que são ancestrais, portanto reproduzem as formas de opressão que estão na raiz da violência.
O Estado Islâmico não é um grupo totalmente desvairado. Representa uma resistência profunda ao colonialismo cultural nos países muçulmanos e nas comunidades muçulmanas da Europa. Por que jovens dos EUA e da Europa vão morrer ali? Por que mulheres vão se casar e ter filhos com militantes do Estado Islâmico?
Essa diversidade cultural e política é a que existe no planeta. Não podemos criar um standard do politicamente correto e do humanamente correto, porque isso não existe. Cada vez que vamos afirmar um direito num sentido, vamos encontrar outras formas de opressão.
Vivemos atualmente numa contradição, e a internet exacerba isso. Se respeitamos realmente os direitos democráticos, devemos aceitar que são os povos os que elegem as formas democráticas em que querem viver.
Você não pode, com o pretexto do civilizado ou do não civilizado, impor formas de vida. Isso é colonialismo cultural e político, cuja reação violenta estamos vendo agora.
Sim, é preciso defender os direitos da mulher em todo o mundo, mas as mulheres de cada cultura é que têm de interpretar isso e mostrar como querem ter esse direito respeitado.
Valores universais há, mas a interpretação deve ser feita em cada sociedade. A forma de defendê-los depende de cada cultura.
Está em risco o Estado de Direito no Brasil?
Do ponto de vista concreto, ele não existe na maioria dos países. No Brasil, não há Estado de Direito. No Brasil, há uma classe política corrupta que utiliza o Estado para seus próprios fins. Faz isso como classe, ainda que como governantes concretos às vezes não o sejam. No Brasil não há um Estado de Direito, há a manipulação do Estado de Direito para manter um Estado patrimonial.
Mas ocorre o mesmo nos EUA. Ali se governa para a classe política e seus interesses. Sem Wall Street não se pode fazer política. E se Wall Street se afunda, toma-se o dinheiro dos contribuintes, e se entrega a Wall Street.
O movimento Occupy não mudou isso, mas fez com que mudasse a consciência dos EUA sobre a desigualdade social, que o americano médio não sabia que era tão importante.
O Occupy é responsável por conscientizar os norte-americanos sobre a desigualdade social e desconstruir a ideia do “sonho americano”, de que você pode chegar aonde quiser se for empreendedor e trabalhar.