Puxando pela Memória: “Seu” Cabral – Iraci Gama Santa Luzia
A minha vida tem sido repleta de situações extraordinárias, que hoje reputo contributivas e fundamentais na minha formação pessoal e política. Ainda na infância participei de algumas greves dos ferroviários, levada pelas mãos do meu tio Zeca da Gama e, por esse intermédio, estreei falando em público, já adolescente, em substituição à profª Agal Máxima Conceição, na greve de 1960.
Conheci várias pessoas importantes e vivi momentos especiais, com algumas delas, como as três professoras primárias: Maria de Lourdes Saback, Maria José Bastos – Zezé e Ana de Oliveira Campos – Noquinha. Conheci alguns políticos, como Fernando Santana – Deputado Comunista de vários mandatos que, no comício de campanha de Murilo Cavalcante para Prefeito de Alagoinhas, na Rua 2 de julho, em 1962, após minha fala, tomou o microfone e disse, com sua voz possante, dentre outras coisas: “(…) ainda ouviremos falar muito dessa jovem, pois ela vai muito longe (…)” e me levantou do chão, num abraço inesquecível.
Conheci também algumas figuras humanas, típicas, como “Dedé doido” que vinha todos os dias à minha casa conversar com meu avô, pedia pimenta malagueta e a machucava, com uma pedra, no parapeito da janela. Comia e perguntava: “Seu Pedro”, se a gente amarrar uma escada na outra, um bocado de escada, a gente chega no céu? E meu avô, com toda paciência para ouvir seus questionamentos, conversava com ele, assim como conversava com outras pessoas menos sociáveis. Havia alguns vizinhos de nossa casa que vinham a essa mesma janela, para falar com meu avô sobre diferentes assuntos, como “Seu” João Pereira – fã de Getúlio Vargas; “Nenenzinho”, filho de dona França – fã de Luiz Carlos Prestes – que dizia “eu sou uma brasileira russa”; “Seu” João Batista que falava sobre religião, sobre espiritismo, dentre outros.
Mas, sem sombra de dúvidas, uma personagem desse tempo, a cada dia se agiganta, no meu interior, pois, com o passar do tempo e pelos contatos com pesquisadores de nossa história, fomos descobrindo a grande importância desse meu “guru” da infância: “Seu” Cabral. Joaquim Cabral de Souza era um sapateiro “remendão” que morava na Rua 2 de julho, perto da minha casa, bem em frente ao trecho da entrada para a Oficina São Francisco. A casa era muito grande e a primeira sala, a sala de entrada servia de “ateliê” do morador que aí colocava todo seu material de trabalho.
No centro dessa sala, uma cadeira de madeira, com encosto e assento de couro em tiras, era o local onde esse homem passava o dia sentado, na atividade rotineira de consertar calçados. Sempre sem camisa, exibia um tronco forte – apesar da idade denunciadora de alguns janeiros – e de muita resistência, provocada talvez pelo movimento repetitivo e constante do martelo, na sola do sapato sobre aquele “pé de ferro” que ele usava como suporte para o serviço de colocação de um novo solado, de meio solado a famosa “meia sola” que renovava os calçados já usados.
Lembrando, depois de tantos anos, o que acontecia naquele espaço, vem uma reflexão: como é que aquele homem aguentava o peso da batida do martelo sobre o calçado apoiado no pé de ferro que ele colocava sobre a coxa esquerda, perto do joelho onde punha uma cobertura protetora de um pedaço de couro? A perna recebia toda a carga do peso da batida do martelo, para juntar o novo solado lambuzado por aquela cola de cheiro forte – a cola de sapateiro ou sobre pequenos pregos que ele usava para reforçar a ligação do novo material com a base do calçado que ele consertava, encaixado no pé de ferro. Como é que aquele homem aguentava tanta pancadaria, todo dia, o dia todo? É verdade que à frente dele, havia uma bancada, mas era usada para guardar alguns materiais importantes, em divisões próprias, como: cola, água, pregos, brochas, ferramentas indispensáveis no trabalho do remendo. Mas batida de martelo, só mesmo sobre o joelho do sapateiro!
Era, portanto um homem forte, na casa dos cinquenta anos, de pele curtida e escura. Pela cor da pele seria negro, mas o cabelo não era encarapinhado, pelo contrário, era muito liso – um negro, de cabelo bem liso, o que caracterizava a designação “cabo verde”. E o corte de cabelo, muito comum nesse tempo, era a cabeleira inteira – o fio reto da testa até o pescoço, com costeletas curtas e cangote bem aparado.
Ele gostava assim. Quando sentava na cadeira para trabalhar, de manhã, estava pronto – rosto bem lavado, cabelo bem penteado, bem assentado. Não me lembro de ter visto, uma só vez, um único fio de cabelo suspenso, e cabelo assanhado, jamais. Esse tipo de corte só serve mesmo para quem tem cabelo liso e eu tive o prazer de conviver com uma cabeleira assim, naquela minha infância – a de Zeca da Gama que me deixava pentear constantemente, sempre que pedia, inclusive fazendo trança, só não me permitia colocar laço de fita nas pontas. Eu prometia concordar e por isso, ele sentava no banco eu ficava de joelhos, por traz dele, fazia e desfazia as tranças (…) e ele dormia.
Em “Seu” Cabral, o cabelo liso, bem penteado, da cor da pele era contraste que chamava atenção, à primeira vista, quando ele estava sério. Mas quando dava risada, um outro traço o distinguia: a gengiva bem corada, cenoura, sem um só dente. E hoje dá para pensar: por que será que ele não tinha dentes? Opção, falta de recursos, displicência, simplicidade? Quem sabe tudo isso misturado. E ele ria livremente, enquanto conversava com quem estava à sua volta, sem qualquer preocupação com a falta de dentes que dava à fisionomia daquele homem simples, o toque de naturalidade de sua alma livre e ansiosa por mais liberdade para todos. A preocupação não estava com a boca, mas com a palavra que saía dela!
A cadeira do sapateiro ficava no centro da sala, em frente à janela da rua, o que permitia a visão desse homem, do outro lado da linha do trem. Em volta da cadeira, muitas tiras de pneus usados em pequenos pedaços ou pedaços grandes e até pneus inteiros, além de tiras e pedaços de couro curtido. Cabe lembrar que, nessa época, os solados dos sapatos, de um modo geral, eram de pneus, inclusive, os escolares, como aqui, em Alagoinhas, o nosso sapato da farda diária do Colégio Santíssimo Sacramento, o que o tornava muito pesado, desagradável. Os sapatos, sandálias, chinelos, aguardando conserto, se misturavam aos materiais espalhados pelo chão da sala. E, por cima de tudo, em folhas soltas, para leitura de diferentes assuntos, conforme o interesse de quem chegava, estava o jornal.
O jornal “A Tarde” comprado diariamente era o elemento indispensável para aquele homem e sua comunidade. Por isso, não só o jornal do dia ficava à disposição, mas também o dos dias anteriores. Dinheiro era coisa rara naquela casa, porque os “remendos” custavam pouco e “Seu” Cabral não cobrava de famílias mais pobres… O do jornal, porém, era sagrado! viver era verbo de difícil conjugação por aquela família e dependia, muitas vezes, de dona Cota – mulher de Cabral – especialista em transformar cabelo crespo em liso, pelo processo de alisamento a ferro quente. A vizinhança (e até gente de longe) entregava a sua cabeleira à competência de dona Cota que o espichava nos moldes da época e todos elogiavam a transformação efetuada.
O que a chapinha faz hoje com o poder da eletricidade, dona Cota fazia naquele tempo com a força dos braços num processo que pode ser assim descrito: uma porção pequena de cabelo apoiado num pedaço de pano em várias dobras, para evitar quentura maior na mão esquerda, enquanto o ferro esquentava no fogão a carvão e, na mão direita, o ferro, fechado, deslizava sobre aquele pedaço de cabelo puxando-o delicadamente, mas com firmeza. Depois, com o ferro aberto, a porção do cabelo entre as duas chapinhas, segurava e puxava aquele pedaço de cabelo da cabeça às pontas até que ele ficasse completamente liso.
E essa porção de cabelo já pronta vai sendo colocada sobre as outras, enquanto ela põe novamente o ferro sobre a brasa, a esquentar, para alisar novo pedaço que ela prepara cuidadosamente, até espichar toda a cabeleira. Esse trabalho começava sempre pela base do cabelo – o cangote e ia subindo aos poucos, contornando toda a cabeça. Claro que a cabeça ficava quente, mas o cabelo amansado, mais fácil de pentear, compensava o calor daquele instante.
Isso acontecia na área próxima à cozinha, nos fundos da casa. Na frente, na sala do sapateiro, ele gastava saliva e sorriso, conversando com seus clientes, seus amigos, seus ouvintes, seus “aprendizes”. No meio desses, eu me incluo, porque acompanhava meu avô, todos os dias, até a casa de “Seu” Cabral para aquela conversa. O meu avô já tinha certa idade e não enxergava direito e a criança que vinha pela sua mão, era guia e companhia e, sem querer, tornou-se testemunha do modo de vida desse homem que, para ela, era um sapateiro que falava de política e vivia cercado de gente que ela já conhecia da convivência familiar ou ia conhecendo naquele ambiente.
Ferroviários e sindicalistas chegavam, entravam, pegavam aquelas páginas de jornal, faziam leitura de determinadas matérias ou trechos específicos, sempre para provocar discussão ou reforçar a discussão já iniciada. Era um entre e sai de gente, sem licença, nem interrupção. Quem entrava, ficava de pé, encostado na parede, ou de cócoras ou sentado no chão, quando o cansaço aumentava. Isso mostra a escassez de apoio logístico para quem chegava, pois além da cadeira do sapateiro, só havia uma outra – a do meu avô. Eu mesma ficava de pé ou de cócoras ou sentada no chão, como todos os visitantes, até que recebi um presente de “Seu” Cabral: um banquinho feito com pedaços de madeira e tiras de pneu.
Ele ficava encostado na parede junto da cadeira do velho e saía dali somente para a “dona” sentar. Certamente essa foi a primeira “carteira escolar” em que sentei e aquela sala o primeiro espaço de aula explícita, na minha vida. Só não posso dizer que “Seu” Cabral foi meu primeiro professor, porque Deus já me havia dado o privilégio de viver numa família, onde a prática de vida aliada à palavra, aos conselhos, era um manancial de ensinamentos, e principalmente pelo exemplo, é que fui aprendendo.
E o chefe dessa família era amigo de “Seu” Cabral. Amigo, mesmo, porque, de vez em quando, ele entrava no quarto, trocava os chinelos, às vezes a camisa, pegava o chapéu e ouvia da minha avó: “já vai Pedro?” E ele respondia: ”Vou ver Cabral”. Eu estranhava aquela resposta, porque ele não me levava. Aquela não era nossa viagem diária, constante. Ele ia sozinho. Só depois fiquei sabendo que ele ia à delegacia, quer dizer, ia primeiro ao prefeito Pedro Dórea – seu compadre – pedir por aquele “preso” que era seu amigo e, com a ordem da autoridade, voltava com o “preso” para casa. Só agora depois de adulta e pelas lições dos pesquisadores, entendi o que se passava – “Seu” Cabral era comunista e perseguido político que, quando a autoridade policial queria, o levava, sem qualquer explicação ou justificativa, para trás das grades. E voltava sempre para aquela mesma cadeira de sapateiro, no meio de botas, sapatos e chinelos velhos, recortes de couro e pneus, e folhas abertas de jornais, para continuar sua missão de libertador de mentes.
A escola de “Seu” Cabral teve muitos alunos. Os ferroviários faziam ponto no sapateiro, para atualizar as informações, saber das novidades, fazer questionamentos, interagir. A Oficina de São Francisco apitava às onze horas para a saída dos operários, doze e trinta fechava o portão novamente para o turno vespertino, liberando todos os operários às dezesseis e trinta. E esses horários controlavam as visitas ao “professor”. Alguns paravam lá às onze horas, outros preferiam almoçar e chegar antes do horário de fechar o portão e outros, ainda, optavam pela parte da tarde, porque ficavam com mais tempo para esses contatos.
Verdade é que, entre o portão da Oficina e a sala de aula do sapateiro, formava-se uma linha imaginária – uma estrada do conhecimento que atraía esses ferroviários e os mantinha ligados e “viciados” em discutir a situação política do país, o que os afinava com as questões gerais e específicas do operariado brasileiro e internacional. Para nós, que acompanhávamos essa movimentação, de perto, muitas vezes sentada no banquinho de tira de pneu, a lição maior era do valor da diversidade, pois ali todos tinham vez e voz e a divergência acontecia em clima de respeito. O jornal era lido e comentado, indistintamente.
Às vezes, alguém dizia: ““Seu” Pedro, pede pra menina ler”. E eu lia, com desenvoltura, palavras que nunca tinha visto/ouvido na minha escola primária e assim ia enriquecendo o meu vocabulário com aqueles textos e seus significados. Foi aí na escola de “Seu” Cabral que ouvi falar, pela primeira vez em “trustes”; na juventude, o combate aos “trustes” americanos era a tônica nos discursos, mas, naquele tempo, eram trustes japoneses. Na década de oitenta, em conversa com o Sr. Ildefonso, na preparação de uma carta dele para o Presidente da República (desde a infância, sirvo de “escriba” para muita gente) ele me contava que se lembrava de mim, sentada e lendo o jornal na casa de “Seu” Cabral e depois, na adolescência, estudando e lendo em voz alta, cedinho, andando na Rua 2 de julho – da Estação São Francisco até a porta de “Seu” Durval.
Fiquei emocionada com essa declaração porque o senhor Ildefonso era um operário aposentado do curtume (no fim do 2 de julho havia uma concentração de 3 curtumes: O Santo Antonio, O São Francisco e o São Paulo); era um comunista respeitado pelos seus pares, pela tradição de seriedade dentro do PC do B. E quando ele falava em “Seu” Cabral eu sentia que, para ele, a minha presença lá era referência de credibilidade. Temos certeza, pois, de que aquele homem pobre, sapateiro, desdentado, conversador, alegre, risonho, questionador, crítico, é o símbolo de uma época em que o operariado buscava se fortalecer pela informação, se unir para as reivindicações. E aquela sala de “Seu” Cabral era oficina de comportamento, na área de localização, ponto de encontro dos ferroviários/ operários de Alagoinhas, ávidos por progresso, mas também por respeito aos seus direitos.