“O judiciário não governa, mas impede o desgoverno”, diz Ayres Britto

Um dos maiores constitucionalistas do Brasil, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, é enfático ao afirmar que não há saída para a crise instalada hoje no país, que não seja pela Constituição. “É fazer da Constituição mesa redonda sempre para nos marcos dela própria encontrar os critérios de resolução de quaisquer dissensos, controvérsias e contendas instabilizadoras da vida coletiva”. Para ele, a “Constituição governa permanentemente, quem governa transitoriamente”. E arremata: “o presidencialismo é maior que o presidente da República e o governo maior que o governante”.

Ministro estamos vendo um tensionamento nas relações entre o Planalto e o STF, com acusação de interferência nos poderes. Como o senhor avalia? Há excesso?

Eu venho dizendo que povo desenvolvido, povo amadurecido politicamente, povo civilizado juridicamente é o que faz prevalecer sobre os governantes as próprias instituições. Na linha de Ruy Barbosa, salvação sim, salvadores não. Na linha do que veio a dizer Brecht, tantos anos depois de Ruy, que triste de um povo que precisa de heróis, de chefes, líderes. O povo precisa de instituições. As lideranças se dão dentro das instituições. Aí as lideranças vão surgindo nesse contexto de fidedignidade dos agentes públicos às funções do seu cargo e, mediatamente, por fidelidade às instituições de que esses cargos façam parte. Quando precisamos de liderança, nesse contexto, intrainstitucional é para instaurar um diálogo do mais largo espectro republicano e federativo. Então, o que é preciso antes de tudo, o ponto de largada das coisas, na condução dos destinos coletivos: um diálogo republicano entre os poderes e um diálogo federativo entre as pessoas federadas. Portanto, digo que estamos precisando de governantes que instaurem esse diálogo republicano e federativo do mais largo espectro. E no segundo momento, um diálogo permanente entre a pessoa do Estado e a sociedade civil. Nesse diálogo entre os Poderes, há uma ordem lógica e cronológica. Artigo 2º da Constituição. Tudo começa com o Legislativo, passa pelo Executivo e termina no Judiciário. Porque se não terminar no Judiciário, as coisas se perdem no infinito. Os dissídios, as controvérsias, os dissensos resvalam para o interminável e a instabilidade social passa a ser a regra. Então, é preciso um ponto terminal em tudo, institucionalmente falando, é o Judiciário. Por isso que se diz: o Judiciário decidiu, está decidido. Você recorre de uma decisão para o próprio Judiciário. Vai até a última instância debaixo de um sistema generoso de recursos, mas você não pode, assim como não pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, não pode impedir o Judiciário de falar por último. Não significa que o Judiciário seja infalível, mas significa que ele, já pelo STF, é a instância estatal decisoriamente extrema. Derradeira. Extrema no sentido de derradeira, portanto. Ponto terminal das coisas. Numa democracia, os antídotos contra eventual eleição de governantes muito aquém dela mesma são menos fortes do que os antídotos contra o mau governo deles em face dessa democracia mesma.

Como o senhor avalia esse estado de crises?

Crise é tribulação, é distúrbio, é perturbação, com dimensão suficiente para instabilizar a vida coletiva. Metaforicamente, crise é mar revolto, é ressaca prolongada. Então, toda dificuldade é também oportunidade de amadurecimento, de crescimento coletivo. É preciso ver nas dificuldades oportunidades para não jogar a toalha, não entregar o jogo no primeiro tempo, como na música de Simone, a grande cantora baiana. Você não vai entregar o jogo no primeiro tempo. Então, na linha do que disse também Fernando Sabino, é preciso fazer da queda um passo de dança, e o povo sabiamente diz: é preciso fazer do limão uma limonada. Há um desafio permanente do povo mesmo, e não só dos governantes, de contribuir para a superação de toda e qualquer crise. Mas é preciso que o povo veja as crises assim multitudinárias pelos dois ângulos. Do ângulo dos governantes e do ângulo do povo mesmo, porque o desafio do povo diante de crises é amadurecer o suficiente para a assunção de duas posturas básicas: a primeira, para não permanecer sob a regência de governantes muito aquém da Constituição (donde as eleições periódicas, o impeachment, as punições pelo cometimento de infrações penais comuns …); segunda, não se deixar contaminar pelo eventual fígado azedo de nenhum dirigente igualmente público, porque aí vai ser miasma por tudo que é lado.

O presidente Bolsonaro participou de atos pelo fechamento do Congresso e do Supremo. Isso atenta contra a democracia? Há espaço para se falar em impeachment hoje?

É preciso formalizar perante as instâncias públicas competentes esse tipo de aferição do comportamento dele. Se isso, pela reiteração, pela contumácia, pela gravidade, se isso chega a caracterizar ou infração penal comum ou crime de responsabilidade. Não estou dizendo que ele já incidiu nesses crimes. Estou dizendo que, diante dessa pergunta sua, eu só posso responder juridicamente que os antídotos de que falei há pouco existem para, em momentos como esse, as instâncias competentes se pronunciarem formalmente. Caso da Câmara dos Deputados, primeira instância de poder a decidir se autoriza, ou não, a abertura de processo contra o presidente da República tanto pelo cometimento de infração penal comum quanto de crime de responsabilidade.

Porém, com a lembrança de que a Constituição exige como pressuposto de condenação, em processo de impeachment do chefe do Poder Executivo Federal que ele revele no exercício do cargo uma visceral inadaptabilidade à ordem constitucional brasileira. Uma impossibilidade invencível de conviver com tal ordem, a ponto de o Senado Federal (instância de processo e julgamento) se ver diante da contingência de ter que optar entre o acusado e a Constituição mesma. Sem meio termo, então, porque os dois são inconvivíveis. Alenta-nos, porém, constatar que, se o perigo mora ao lado, ao lado também mora a solução: a Constituição brasileira. Uma solução tão objetiva quanto legítima, por ser ela (Constituição) que governa quem governa. Governa permanentemente quem governa transitoriamente. Mais: ela é a criadora de todas as instâncias de Poder (todo o Poder Executivo no meio), e o certo é que nenhuma dessas criaturas pode se rebelar contra o seu criador. Pena de incorrer num tipo de predação institucional que dá em constituicídio. Se a democracia não é antídoto infalível para a eleição de um eventual governante autoritário, no entanto, dispõe de antídotos plenamente eficazes para impedir que esse tipo de governante subjetivamente autoritário venha a emplacar um governo objetivamente autoritário.

Como o senhor vê as criticas do presidente Bolsonaro de que está havendo ingerência do Judiciário no Poder Executivo?

Ao meu juízo, o que está faltando é uma distinção técnica, uma precisa distinção de Direito. O que o Supremo vem fazendo não é ativismo no sentido de usurpação de competência nos outros dois poderes. O que o Supremo vem fazendo é proatividade interpretativa. Como separar ativismo de proatividade? O ativismo Judiciário é um ir além do direito positivo, é ir além das normas jurídicas objetivamente postas. É ir além das normas abstratas, um ir adiante das leis, da Constituição e dos atos normativos que o Poder Judiciário tem que interpretar para concretamente aplicar. Esse ir além do direito positivo, a partir da Constituição, é ativismo e, portanto, usurpação. O Supremo não pode ir além. Ele não pode, nenhum ministro pode fazer, nenhum magistrado pode fazer de sua vontade subjetiva a vontade objetiva do Direito em abstrato. Não pode. Isso é voluntarismo. É proibido. Porém o Judiciário não deve ficar aquém do potencial normativo desse mesmo Direito. Ele tem o dever de exaurir a potencialidade normativa de todo e qualquer dispositivo jurídico. E esse dever do exaurimento dos conteúdos significantes do Direito Positivo, positivo, esse dever de não ficar aquém, tem nome: proatividade interpretativa. As pessoas não estão fazendo essa distinção técnica. Claro que aqui e ali pode haver uma extrapolação. Não há antídoto seguríssimo contra a extrapolação judicante. Mas há meios processuais-judiciários de acompanhamento e também de questionamento de toda e qualquer decisão assim judicialmente lavrada. E, mesmo quando a decisão transita em julgado, a Constituição avia dois remédios: a revisão criminal e a ação rescisória. Esta a regra de um jogo diretamente constitucional que todo Presidente da República se compromete a “manter, defender e cumprir” (art. 78 da Constituição), quando de sua posse perante o Congresso Nacional.

O STF pediu à PGR para avaliar o pedido de apreensão do celular do presidente Jair Bolsonaro e dos filhos dele. O Planalto e o ministro do GSI reagiram. Onde há o limite e o excesso nessas funções?

Não houve decisão quanto a isso; decisão no sentido de ordenar a apreensão de tais celulares. Porém, como houve um pedido formal de parlamentares para essa apreensão, prudentemente, e até mesmo por imperativo de ordem técnica, o ministro Celso de Mello encaminhou o pedido para a instância estatal de origem de todo o inquérito: o PGR. Então, foi um despacho encaminhamento procedimental ou de mero expediente, falemos assim. Não foi despacho no sentido decisório. As pessoas, precipitadamente, interpretaram esse despacho como decisão judiciária. Uma espécie de mal entendido lamentável, porque tensionou desnecessariamente a vida do País. Elevou as taxas de stress entre dois Poderes da República. Em síntese, a saída da crise não é a saída da Constituição, é saída pela Constituição. É fazer da Constituição mesa redonda sempre para nos marcos dela própria encontrar os critérios de resolução de quaisquer dissensos, controvérsias e contendas instabilizadoras da vida coletiva.

 

Fonte: A Tarde

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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