“O dono do direito é o trabalhador”, diz desembargador

O desembargador do Trabalho Jeferson Muricy fala sobre o aumento das ações trabalhistas e de como o Tribunal da Bahia conseguiu superar as dificuldades com cortes orçamentários, criando um aplicativo que esclarece e facilita o acesso do cidadão ao andamento dos processos.

A que podem se atribuir os 13% do aumento das ações trabalhistas em 2016? Há alguma relação com o desconforto das pessoas com as leis, ou outro motivo específico?

Na verdade, na Bahia nós temos um aumento maior que 13%. Aqui, houve um aumento médio de 15%, entre 2015 e 2016, se levarmos em conta os processos que tramitam nas varas e no Tribunal, onde os impactos deste aumento foram diferentes. Nós tivemos um incremento em 2016, em relação a 2015, de 28% no Tribunal e de 12% nas varas. Por isso o aumento médio é de 15%. O aumento de 12% ocorrido no 1º grau está relacionado com estes números que você tem, que são números nacionais. Mas o aumento que é recorde no 2º grau é decorrente de alguns fatores, sobretudo da greve ocorrida em 2015 – que foi uma greve muito demorada – e que represou os processos no 1º grau. Então, em 2016 estas demandas atrasadas vieram maciçamente e repercutiram em aumento maior no Tribunal do que nas varas. De qualquer forma, o aumento de 13% já é grande – e é um reflexo da forte crise econômica pela qual passamos.

Então, o aumento de ações acaba sendo um reflexo dessa crise que o país vem vivendo?

Parece que sim. Nós temos, de qualquer modo, no Brasil inteiro, um aumento permanente ano a ano (eu tenho aqui uma série histórica desde 2010) das demandas judiciais, mas essas diferenças não são tão gritantes como foram em 2016.

Qual foi o impacto disso diante de uma redução de 90% das despesas de investimento e 29,4% no custeio do orçamento do Tribunal Regional do Trabalho. Investiu-se pouco e usou-se muito?

Os impactos foram muitos. Inicialmente, quando houve este corte no orçamento, e a Justiça do Trabalho foi a mais prejudicada, nós estabelecemos essa situação como absolutamente crítica. Aqui, por exemplo, nós tivemos que reduzir horários de trabalho, horários de funcionamento. Então isto teve um impacto muito grande no funcionamento geral do Tribunal, principalmente no atendimento ao público. Depois, de certo modo, houve um alinhamento, uma reparação dessa situação, e voltamos ao funcionamento normal. Mas temos ainda hoje muitos impactos causados por ela. E o maior impacto com relação a isso que estamos sofrendo hoje é que, por exemplo, aqui na Bahia, esta situação já não é boa e é muito diferente dos outros tribunais. Nós estamos com um déficit de aproximadamente mil servidores no nosso quadro e as pessoas que estão se aposentando ou estão ficando doentes não podem ser substituídas. Então, hoje, em termos de estrutura de pessoal, temos um déficit grande, e esta é uma situação que nós mesmos não podemos solucionar, pois não podemos fazer novas admissões. Em razão desse déficit de pessoal, o Tribunal passou a investir pesadamente em soluções de inteligência, de informática e de gestão administrativa e judiciária, que permitiram que nós – apesar dessa situação de muita dificuldade – pudéssemos ter um incremento na nossa produtividade.

Fale um pouco mais sobre estas soluções.

A primeira diz respeito à política nacional de disseminação do uso do processo judicial eletrônico – uma gestão a partir do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do próprio Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) – sobre o qual não temos grande ingerência, embora nossa equipe de informática participe intensamente do desenho e do amadurecimento da ferramenta eletrônica. Essa é uma ferramenta que dá agilidade no desenrolar do processo. Ela acabou com muitos atos que eram praticados por servidores e que hoje são realizados eletronicamente, de modo que isto representou uma necessidade de realocação da mão de obra no Tribunal, uma vez que serviços como os de informática cresceram exponencialmente, mas outros foram reduzidos, como aqueles relativos a recepção e distribuição de petições e processos. Além disso, o Tribunal desenvolveu uma ferramenta de informática, um aplicativo do TRT-5, para smartphones (que inclusive já foi adotado nacionalmente), totalmente desenvolvido aqui, permitindo uma transparência muito grande no processo.

É um software ou um aplicativo?

É um aplicativo. Ele já está disponível nas lojas virtuais, como a Play Store, da plataforma Android, e qualquer usuário que tenha processo, seja ele empregado ou empregador, pode baixar o aplicativo e consultar o andamento do processo. Entrando no próprio cadastro, ele consegue ter acesso a todos os documentos e atos do processo e, a partir de agosto, os advogados e juízes terão a oportunidade de movimentar os processos através deste aplicativo. Ele facilita imensamente na transparência e agilidade dos processos, além de ser uma grande ferramenta para compensar também essa perda de recursos de pessoal e financeiros.

É um aplicativo que foi desenvolvido pelo seu corpo de TI [informática]?

Sim. Foi desenvolvido pelo nosso corpo de TI e foi uma ferramenta que impressionou muito o atual presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que esteve na Bahia para a apresentação do aplicativo. Ele gostou, levou nossa ferramenta para o CSJT e vai ser usada em nível nacional. Além disso, o Tribunal desenvolveu um instrumento de gestão judicial que nos permite visualizar e ter maior controle em todas as fases do processo. Diariamente recebemos estatísticas precisas sobre a produtividade do gabinete, com dados sobre processos que estão no acervo, quantos foram julgados, quais estão no prazo, com prazo a vencer, se estão com prazo vencido etc. Estamos investindo pesadamente em instrumentos de informática e de gestão dos processos para aumentar a produtividade. O resultado é que em 2016 tivemos um aumento ponderável na produtividade, apesar dos problemas e cortes. Em 2016, recebemos 209 mil novos processos e demos baixa em 214 mil processos. Tivemos, portanto, apesar de todas as dificuldades, um incremento de produtividade de 27,2% em relação a 2015.

Há necessidade de um maior investimento na estrutura da Justiça do Trabalho, ou o senhor ainda acha que, em algumas situações, ela peca pela pouca eficiência?

Claro que nós temos muitos problemas que impactam, inclusive, no próprio processo de acesso à Justiça. Mas temos feito grandes esforços para superar isso. Há um dado muito importante e que se relaciona com o aumento da produtividade a partir da otimização racional dos nossos recursos. Foi o incremento exponencial do valor que nós pagamos aos trabalhadores na comparação 2015-2016. Em 2015, nós pagamos cerca de R$ 1,166 bilhão de direitos trabalhistas, enquanto em 2016 nós aumentamos esse valor em 68% e pagamos R$ 2,082 bilhões de créditos aos trabalhadores.

Esses números são referentes aos processos que foram demandados aqui durante esses anos?

Sim. O Tribunal atende às políticas nacionais da Justiça do Trabalho e do Poder Judiciário em geral. Temos, por exemplo, investido pesadamente na conciliação. Ou seja, tanto no dia a dia nas varas do Trabalho como nas semanas de conciliação, o Tribunal da Bahia vem desenvolvendo atividades de conciliação que têm dado resultados muito satisfatórios. Encerramos recentemente mais um esforço concentrado de conciliação, com as semanas regional e nacional de conciliação, nas quais conciliamos cerca de R$ 22.500.000 em processos e atendemos ao direito de mais de 670 trabalhadores. Então, são muitas ferramentas que têm nos permitido melhorar os nossos números de processos resolvidos e dados de satisfação.

A conciliação dos casos é o melhor caminho? Na grande maioria – não necessariamente em todos, pois sabemos que existem casos e casos –, a tentativa de conciliar acaba desobstruindo a Justiça e acelerando os processos judiciais das partes?

Sem dúvida! Um processo conciliado é um processo a menos. Claro que é preciso velar para que seja uma boa conciliação, que garanta de fato os direitos do trabalhador, lhe permita receber o crédito mais rapidamente e assegure ao empregador também se exonerar do débito e tocar a vida. Portanto, se obtida em ambiente que assegure a liberdade, a voluntariedade e o equilíbrio do acordo, a conciliação pode ser o melhor caminho. Claro que nós temos muitos problemas em relação à conciliação, sei que falaremos um pouco mais para a frente das questões de reforma trabalhista, mas em torno de 50% dos processos que nós decidimos os objetos envolvem parcelas recisórias, horas extras, redução ou supressão de intervalo. Ou seja, são demandas muito básicas do trabalhador.

É o que prescreve a regra e ninguém cumpre?

Exatamente! Então, podemos dizer que muitas vezes uma boa conciliação pode ser melhor do que uma excelente disputa.

As mudanças constantes nas interpretações das leis trabalhistas vêm catalisando a busca das homologações da rescisão diretamente na Justiça do Trabalho. Qual a sua opinião sobre essa conduta?

Usar a Justiça do Trabalho como instrumento de “homologação” de rescisões todos nós sabemos que é ilegal. A Justiça do Trabalho não é – pelo menos até que a reforma trabalhista seja aprovada e isto seja legalizado – órgão de “homologação” de rescisão trabalhista. Os encarregados disso são os sindicatos, a Superintendência Regional do Trabalho e o Ministério Público em algumas situações. Então, isto não é uma situação desejável, e quando nos defrontamos com ela a nossa atuação como juízes é para punir essa conduta ilegal. Agora, em relação à premissa da questão, eu não penso que sejam frequentes ou constantes as alterações da jurisprudência. Eu não vejo que haja uma constante alteração do rumo da interpretação. É claro que há alguns casos, se formos pegar historicamente, houve uma mudança de 180 graus na orientação da jurisprudência.

Não é o dia a dia?

Os tribunais, notadamente o TST [Tribunal Superior do Trabalho], que é o órgão encarregado de dar certa uniformidade à jurisprudência trabalhista, tem mantido a jurisprudência, no geral, estável, uniforme e harmônica. O problema é que, até 2015, ela não era vinculante, e nos graus inferiores as decisões variam muito. A partir dali, isso muda radicalmente. Hoje, os tribunais têm que uniformizar a jurisprudência, e a jurisprudência uniformizada dos tribunais vincula os juízes. Além do mais, nós todos estaremos vinculados às decisões uniformizadas pelo TST desde 2015. Eu acho que este cenário de decisões conflitantes sobre a mesma questão tende a mudar substancialmente daqui para a frente.

O senhor acha que a reforma trabalhista vai diminuir o número de ações trabalhistas?

Essa questão não só é polêmica como é absolutamente impossível de ser respondida. Porque não temos parâmetros de mensuração que digam “isto aqui vai diminuir a litigiosidade e a quantidade de demandas”. É impossível prever.

Há muitos casos?

Muitos. Hoje, a terceirização é responsável por um grande número de demandas judiciais, e isto porque temos uma terceirização que de qualquer modo sofre grandes restrições. Como a reforma abre totalmente as possibilidades de terceirização, parece que esta será uma fonte de aumento e não de diminuição dos litígios trabalhistas. A reforma trabalhista também legaliza a chamada função homologadora da Justiça do Trabalho, e isso, segundo penso, será mais uma fonte de crescimento exponencial das demandas. Certamente que há tentativas por meio do aumento do custo do processo, particularmente para o trabalhador, de estancar este aumento de ações. A reforma, sobretudo o Projeto de Lei 6.787, que agora está no Senado, cria um ônus muito grande para as demandas do trabalhador. Isso me parece que, se for aprovado, vai refrear as iniciativas do trabalhador de buscar judicialmente a garantia de direitos. Como eu estou mostrando, é um exercício de adivinhação saber qual vai ser o comportamento dos atores da relação de trabalho diante disso e como este comportamento vai repercutir no número de ações judiciais.

Existem itens favoráveis e desfavoráveis?

Acho que se trata de uma concepção que está presente nestes projetos de reforma, sobretudo no Projeto de Lei 6.787, que está no Senado, que é muito regressivo. Além de redutoras de direitos, as reformas mexem muito com o direito constitucional de acesso à jurisdição. Por exemplo: quando ele tenta limitar o acesso à Justiça e à atuação do juiz na interpretação do direito. Não me parece razoável que se pretenda, na sociedade de massa em que vivemos, com o nível de complexidade que temos nas relações do trabalho e no corpo de leis que lhe servem de regramento, reconduzir à concepção da lei e do juiz que se tinha nos séculos XVIII e XIX, herdada do Iluminismo, onde se dizia que a lei era suficientemente clara, não precisava de nenhum tipo de interpretação e o juiz deveria ser simplesmente “a boca da lei”. O poder de interpretação do juiz é fundamental para pegar o enunciado abstrato e genérico da lei e trazer para os casos concretos, que são sempre carregados de diversidade, sobretudo lhe adequando àquilo que a Constituição Federal elege como valores e direitos fundamentais. De qualquer modo, penso que devemos esperar o que realmente será aprovado, uma vez que a situação não está muito fácil, ainda mais depois dos últimos acontecimentos.

Na Justiça do Trabalho, às vezes, pode haver um excesso de ingerência dos sindicatos ante a vontade do trabalhador? Por exemplo: uma pessoa é dispensada de uma empresa e não quer ser readmitida porque já foi recolocada no mercado. Mas o sindicato entra com um pedido de reintegração de todas as pessoas que tinham sido demitidas na mesma época. Só que a pessoa em questão não quer voltar ao antigo emprego. No entanto, o fato de o sindicato ter entrado com aquele processo causa um dano para esta pessoa na nova empresa onde ela está trabalhando. Existe alguma maneira de as pessoas não terem este tipo de problema na Justiça do Trabalho – ou é algo que não há como mudar porque está na lei?

O sindicato não tem o poder de obrigar ninguém a entrar com ação se a pessoa não quer fazer isto. E outra: ele não tem o poder de obrigar o sujeito a exercer um direito que ele não quer exercer, afinal de contas nós vivemos em um país em que a liberdade individual é um marco essencial. Então, se o sujeito, no livre exercício de direitos individuais, não quer exercê-los nos moldes propostos pelo sindicato, ele tem garantido o amplo direito de disposição, inclusive o de dar a quitação, e a ação do sindicato não poderá colocar-se à frente da decisão dele. Isso não é possível perante o nosso sistema constitucional, onde o dono do direito é o trabalhador.

 

Fonte: A Tarde

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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