O centenário de “Totem e Tabu”

Pode-se dizer que a recepção do ensaio “Totem e Tabu”, de Sigmund Freud, condensa de modo exemplar a história da recepção da psicanálise. Se esta foi recebida, desde o seu início, de maneira ambígua, com detratores radicalmente destrutivos e leituras entusiásticas, esse ensaio, escrito a partir de 1912 e publicado em 1913, até hoje divide seus leitores.

“Totem e Tabu”, esse trabalho que procurava um público mais amplo, para além dos psicanalistas, como escreveu Freud na apresentação ao livro, visava formular nada menos do que uma nova “cosmologia”: Freud se coloca, assim, não só ao lado de Sófocles, como escreveu Lévi-Strauss, mas ao lado de Hesíodo, autor da “Teogonia”.

Os homens, na era de Darwin, não descendem mais de deuses, mas, sim, de macacos. Freud assume a tarefa de narrar a origem da hominização a partir de um passo fundante, que o jogou dentro da vida em sociedade, regida por regras (tabus) e não mais apenas pela força do patriarca despótico (figura cuja força se manifesta nos totens).

Essa narrativa do pacto social já tinha sido feita por inúmeros filósofos modernos: mas Freud foi o primeiro a realizá-la na era de Darwin, ou seja, após a “queda” de nossa origem nobre e divina e no contexto da modernidade avançada.

Foi justamente um pensador que, aos olhos da Europa antissemita, “veio de fora”, ainda que tenha vindo de seu interior mais profundo (nasceu no antigo Império Austríaco, em cidade que hoje integra a República Tcheca), quem tomou sua pena para redigir novamente a história de nossa origem.

Fabio Braga/Folhapress
Obra da artista plástica Estela Sokol
Obra da artista plástica Estela Sokol

Se Darwin tornara “indigna” e abjeta nossa origem, Freud deu um passo a mais, ao colocar no centro da cultura um assassinato e um repasto antropofágico. Para ele, tornamo-nos humanos após uma insurreição dos filhos, membros da horda primeva, que, revoltados contra o despotismo do pai, tomaram-lhe o poder, o mataram e o devoraram. Essa história estaria esquecida, enterrada na origem da humanidade.

Mas, do ponto de vista de Freud, não existe esquecimento. Essa verdade está apenas recalcada. Sua sombra se lança sobre toda nossa história e o complexo de Édipo é a atualização individual de um drama social. Essa narrativa sintetizava todo um saber antropológico, etnológico, filosófico, histórico, social e psicanalítico.

A partir da sua ciência e de sua posição histórica, Freud teve a possibilidade aberta de redesenhar nossa origem e, assim, nossa identidade. De seu lugar deslocado, dentro e fora, ele se sentiu à vontade para realizar pontes entre diversas áreas, pôr em circulação um saber que tendia a se cristalizar em disciplinas estanques, alienadas de seu objeto: o ser humano.

De representante de um grupo social que era vítima de uma razão monológica e cega à diferença que tendia, por meio de uma identificação mecânica com o próprio e de uma rejeição feroz do “outro”, a excluir e matar o “diferente”, Freud conseguiu dar uma virada histórica e se tornar um designer da nova humanidade pós-Darwin.

OUTROFÓBICO

Seu design, no entanto, era tudo menos uma teoria monológica. Ao invés de uma antropologia calcada na exclusão, Freud vai descrever e desconstruir esse mecanismo outrofóbico e a razão genocida tanto em “Totem e Tabu” quanto em ensaios como “Psicologia das Massas e Análise do Eu” ou “O Mal-estar na Cultura”.

Sua percepção crítica do mecanismo sacrificial na base da costura do amálgama social leva-o a sair do local do sacrificado (o judeu como bode expiatório) para galgar a posição de um analista desconstrutor desse mecanismo.

Sua busca incessante pela aceitação da psicanálise deve ser posta em paralelo com a sede de aceitação dos judeus em meio a uma sociedade de gentios. Freud e seu desejo de “ocupar o lugar do pai” -pai de uma nova ciência, mas também pai e criador da imagem desse novo humano, caracterizado por seus traumas e faltas- respondeu assim também à demanda dos judeus de reconhecimento e integração na cultura iluminista europeia.

Sua obra testemunha sua época e a posição dos judeus na sociedade austro-húngara. Aquele que “vem de fora” (desse fora de dentro) tem a vantagem de possuir uma outra mirada, uma visão crítica que lhe faculta uma análise da sociedade e de seus mecanismos.

Desse local outro, dentro e fora, Freud se debruça sobre a humanidade para novamente narrar sua história. Seu mito fundador -ao lado da descrição darwinista da origem da humanidade- se tornou a pedra de toque de nossa autoimagem.

Se existe uma noção recorrente na obra freudiana é a que remete à estrutura temporal complexa, multiestratificada tanto da construção de nossa psique como da cultura. Um termo-chave para a compreensão do sujeito e da cultura como complexos que reúnem convergindo diversas temporalidades em um ponto é, sem dúvida, o conceito de trauma, que atravessa toda a história da psicanálise.

Se existem traumas que nos constituem individualmente, Freud, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, enfatiza também os desastres e catástrofes que deixam nossa cultura e sua memória como uma paisagem comparável a um acúmulo de escombros.

Ao abordar, em “Totem e Tabu”, a origem da nossa espécie, ele vai justamente destacar nosso trauma constitutivo, aquilo que nos humaniza: um assassinato, um parricídio. Freud pretendia iluminar os “paralelos do desenvolvimento ontogenético e filogenético da vida anímica”. Pacientes que sofriam de demência precoce teriam criações fantasiosas que apresentam concordâncias com cosmogonias mitológicas dos povos antigos.

A vida anímica infantil, que é comum aos “primitivos” e aos pacientes com doenças psicológicas, deveria explicar essa proximidade. A infância da humanidade se cruza com nossa infância ontogenética.

Como Freud formula no prefácio de “Totem e Tabu”: “Faz-se neste livro uma tentativa de deduzir o significado original do totemismo dos seus vestígios [‘Spuren’] remanescentes na infância -das insinuações dele que emergem no decorrer do desenvolvimento de nossos próprios filhos”¹.

Observamos aqui uma complexa estrutura temporal, com várias camadas, que faz com que se vislumbre irrompendo no ser humano adulto moderno tanto o “primitivo”, que ainda viveria dentro dele, como sua infância, que o estruturaria psicologicamente.

Os que sofrem de doenças psíquicas servem como exemplos privilegiados, já que neles nossa estrutura “traumática” estaria como que exposta à luz do dia. Apesar de, ao tratar dos povos ditos “primitivos”, Freud não ter conseguido se livrar da visão linear, evolucionista e eurocêntrica, suas conclusões são totalmente sustentáveis ainda hoje.

Toda a leitura que Freud realiza de nosso passado tem a ver com uma dupla necessidade. Por um lado, ele buscava comprovar a psicanálise com base na história da humanidade -e consequentemente afirmar sua verdade e validade.

Por outro lado, sua leitura do passado da espécie humana deriva de uma nova possibilidade de interpretação desse passado comum que apenas a psicanálise poderia nos abrir. Essa interpretação se dá na chave do trauma.

CHOQUES

Freud fez na ciência aquilo que, antes dele, Baudelaire havia feito na poesia e na literatura: a construção do indivíduo moderno como aquele que tem de conviver com choques, traumas e catástrofes. A modernidade é traumática, arranca o indivíduo da tradição e o lança no desabrigo, no “Unbehagen”, mal-estar que nos define.

A esse indivíduo, Baudelaire e Freud fornecem uma nova mitologia. A experiência prosaica do homem moderno está repleta de choques, de embates com o perigo.

Freud, nesse ensaio brilhante, está todo o tempo traçando e apagando as fronteiras entre o pensamento mágico e o científico. Para ele, “um sistema é mais bem caracterizado pelo fato de pelo menos duas razões poderem ser descobertas para cada um de seus produtos: uma razão baseada nas premissas do sistema (uma razão, que pode ser, então, delirante) e uma razão oculta, que devemos julgar como sendo a verdadeiramente operante e real [‘eigentliche wirksame und reale’].”

Com relação a “Totem e Tabu” caberia-nos perguntar, para além do motivo sistêmico evidente, por que o mito do parricídio teve que ser descrito? Qual a razão verdadeiramente operante e real para sua existência?

Creio que o determinante desse mito violento é o próprio século de catástrofes que deu luz a esse mito -e Freud o projetou no alvorecer da humanidade.

Tem como fundo real a realidade da violência: Freud publicou “Totem e Tabu” às vésperas da Primeira Guerra Mundial e seu texto “irmão”, “Moisés e o Monoteísmo”, às vésperas da Segunda Guerra. Mera coincidência?

Os dois maiores rituais violentos e sacrificiais do século 20 foram de certo modo antecipados teoricamente por esses ensaios -que contêm a ideia e sacrifício no seu centro. O “delírio” tem de fato uma função mais do que sistêmica, ele também deve expressar um “real” que estava ali se anunciando, irrompendo.

GRANDE ESTILO

Quando, no terceiro item do quarto capítulo, Freud anuncia a visada psicanalítica como aquela que poderia esclarecer os debates em torno do totemismo, ele o faz em grande estilo, com um pequeno parágrafo de uma linha: como o anúncio de um grande espetáculo.

Após ter apresentado no item anterior a descrição que Darwin deu da horda primeva, com a exogamia sendo imposta pela força do macho mais forte que tomava para si todas as fêmeas do bando, e após ter apontado para uma confusão quanto à origem dessa exogamia com relação ao totemismo, Freud inicia assim sua narrativa: “Nessa obscuridade, um raio de luz isolado é lançado pela observação psicanalítica”.

Ele passa então, em um movimento típico do método de “Totem e Tabu” (e de seus ensaios sobre teoria da cultura), para os exemplos e descobertas advindos dos estudos de caso na psicanálise: Freud lança luz no arquivo da cultura a partir dos esclarecimentos que a psicanálise obteve no estudo do arquivo-indivíduo. O microcosmo é a chave do macrocosmo, como na tradição cabalística.

Assim como, segundo Aristóteles, no centro da tragédia devemos ter a ação, o mesmo se passa com a cena de nossa origem narrada por Freud. “No início foi o ato”² é a frase que ele utiliza para concluir esse ensaio, citando as palavras do “Fausto”, de Goethe.

As tragédias são para ele irrupções do histórico, da violência e (re)encenação de sua força destruidora em um presente. Devemos ver como também a própria construção freudiana deve ao seu presente de guerras, de antissemitismo, de autoafirmação dos judeus europeus, de ruptura com a tradição -e com os pais.

“Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal.” Como em uma história dos irmãos Grimm, ou em um mito, a narrativa de nossa origem inicia-se com a expressão “Certo dia”. Uma ciência lastreada em um mito? Sim, mas qual não o é, perguntaria Freud.

A diferença é que a psicanálise como ciência “sui generis” permite-nos assumir esse elemento mítico-imagético-narratológico no interior do pensamento mais rigoroso.

Com essa imagem em mãos, Freud apresenta a chave de leitura de toda a história da cultura: “Todas as religiões posteriores são vistas como tentativas de solucionar o mesmo problema. […] todas têm o mesmo fim em vista e constituem reações ao mesmo grande acontecimento com que a cultura começou e que, desde que ocorreu, não mais concedeu à humanidade um momento de descanso”³.

Também as tentativas de organização social são fundamentalmente determinadas por aquele evento. Afinal, “um acontecimento como a eliminação do pai primevo pelo grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado traços inerradicáveis [‘unvertilgbare Spuren’] na história da humanidade”.

Trata-se do inapagável por excelência, da fundação da cultura, por mais profunda na noite do tempo que ela se encontre. Freud reatualiza toda uma tradição hobbesiana que vê na política uma arte de controlar o outro pela violência, assim como introduz na ciência política, com energia, uma potente teoria do sacrifício, que vem sendo reatualizada nos últimos anos por autores como Giorgio Agamben e sua figura do “homo sacer” (figura essa que pode ser muito bem lida/construída a partir de “Totem e Tabu”).

Grosso modo, Freud nos apresenta dois modelos básicos de organização social: o despótico, vertical, da horda, que depois é reatualizado na família, e, por outro lado, o do clã fraterno, horizontal, criado pelos filhos. Mas a crise sacrificial habitaria o coração da sociedade.

A religião de Deus surge em resposta à saudade do pai -sendo que a ambiguidade com relação a essa figura atravessa toda a história da espécie. A sequência sanguinolenta das gerações de deuses da Grécia Antiga recebe uma explicação a partir dessa imagem freudiana, bem como a história das religiões, tema desenvolvido mais tarde no artigo sobre Moisés.

Já em 1913 Freud vê que, por exemplo, no cristianismo “uma religião filial substituía a religião paterna” 4.

Retomar hoje esse texto de Freud (que ele considerava, ao lado de “A Interpretação dos Sonhos”, sua melhor obra) permite não só frequentar um dos maiores e mais inteligentes ensaios do século 20 mas também repensar o local da violência e do dispositivo sacrificial hoje.

O início do século passado, com as novas tecnologias industriais, políticas e de guerra, já indicava a Freud o futuro destruidor que esses tempos teriam. A dialética do progresso e da razão instrumental iluminista é posta a nu por ele em ensaios como “Totem e Tabu”. Cabe a nós, no centenário dessa obra, restituir-lhe também o local que merece em nosso pensamento crítico.

Notas
1. “Totem e Tabu” já foi traduzido inúmeras vezes no Brasil. Duas das versões mais recentes chegaram às livrarias neste ano, pela Companhia das Letras (trad. Paulo César de Souza, R$ 14,90, 176 págs.) e pela L&PM (trad. Renato Zwick, R$ 35,90, 256 págs.). No texto acima, Márcio Seligmann-Silva tomou como base a edição lançada pela Imago em 1999 (trad. Órizon Carneiro Muniz, esgotada). Todas as citações presentes no texto, exceto quando indicado, são desse volume.

2, 3 e 4. A tradução foi modificada pelo autor a partir da edição citada.

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA, 49, doutor em teoria literária pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale, é professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor, entre outros livros, de “O Local da Diferença” (ed. 34, 2005).

ESTELA SOKOL, 34, é artista plástica.

 

Fonte: Folha de São Paulo

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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