O aguadeiro, o jegue e o lapo de relho – José Jorge Andrade Damasceno

Originária da mesma entrevista que inspirou a republicação da semana passada, a crônica aqui reproduzida é mais um daqueles lampejos que se tem após ouvir relatos cheios de intensidade, permitindo ao que os ouve, fazer saltarem palavras ao cérebro, ao ponto de construir um arrazoado que reflita o que ouviu.

A entrevista feita com a professora Iraci Gama, então prestes a completar setenta anos, deu origem a mais esta crônica, na qual o seu autor mesclou elementos recolhidos do vasto feixe de memórias da entrevistada, entrelaçando-os a lapsos de ficção e entremeando com a sua própria memória, ela mesma não isenta de escolhas, silêncios e esquecimentos.

Talvez alguns dos que a lerão pela primeira vez, ou mesmo os que já a leram possam ter reavivada alguma camada de sua memória, quiçá já completamente encoberta pelo passar do tempo ou pelo farfalhar dos ruídos e pelo ribombar das vozes dos tempos mais próximos.

Boa leitura ou releitura.

Alagoinhas, naqueles idos e já bem distantes anos, era um aprazível lugar do interior, com grande diversidade de vegetação nativa, que servia a população de um modo geral e aquela parcela mais pobre em particular, fornecendo madeira dos mais variados tipos, para todos os fins: carvoaria, lenha para a preparação de alimentos; construção de casas e mobiliários; aquecimento e construção de cercas, fabricação de gaiolas e caixotes para os mais diversos usos.

Era também dona de um agradável desfilar de ervas e plantas, frutos dos mais variados matizes, que aguçavam o olfato e instigavam o paladar de todos quantos os pudessem saborear, em seu tempo, em sua estação. Laranjas, mangas, jacas, cajus, araçás, goiabas, abacates, cajás, cajaranas, tamarindos, graviolas (jaca de pobre), jambos e suculentas mangabas, são apenas alguns que ocorrem lembrar. Faziam parte inseparável do dia a dia das pessoas, sendo consumidos in natura ou, sob várias outras formas, como doces, sorvetes, picolés, abafabancas, geleias e, tantas quantas a imaginação culinária permitisse.

Neste desfilar fértil de cores, cheiros, sabores e ruídos, se levanta e se deita a cidade, ao som do “Pirulito”, permeado pelo mugir das vacas leiteiras, do cacarejar das galinhas nos muitos quintais, do burburinho dos rios e riachos que cortam a terra plena de ingazeiras, então abundantes naquela paisagem; pelo ruído monótono das casas de farinha e, aqui e ali, o miar de gatos e o uivar de cachorros, completam o caldal de sons que marcavam aqueles tempos em que, os sinos das igrejas e o apito da oficina ferroviária, que podia ser ouvido em toda a cidade, marcavam o amanhecer e anoitecer do viver do lugar.

Aquela em especial, era uma madrugada fria de agosto; estava ainda escuro, só a lua e algumas poucas estrelas, davam alguma luz; o vento de inverno soprava livre e gelado, naqueles já distantes anos 50 do século XX.

Três e meia ou quatro da manhã, não chovia e, talvez fizesse uns 16 graus, aquele aguadeiro despertava para mais um dia duro de labutas. Era seu ofício, o modo de ajudar prover a subsistência de uma mãe lavadeira e mais dois irmãos menores, que com ele formavam aquela pequena e pobre família.

Zé Carlos, este era o nome pelo qual o chamavam a freguesia e os parentes. Era novo ainda, parecia ser mais velho do que o era de fato. Desde muito cedo, talvez entre os treze e quatorze anos, já estava acostumado no ir e vir de aguadeiro, nem precisava ser despertado no horário; o corpo já o fazia quase que automaticamente.

Deixando para trás a cama de tábuas, cujo colchão eram duas esteiras sobrepostas e as parcas cobertas de taco, que lhe aqueciam o sono, saía para procurar o animal com o qual contava para a sua labuta cotidiana: o jegue, que pastava apeado, ali por perto, visto ser aquele lugar, bem rico em feno com o qual recobrava um pouco das energias despendidas no dia anterior, no ir e vir carregando os quatro barris que lhe pesava no dorso de poucas carnes, mas muitas cargas.

Ao encontrar o pequeno asno, Zé Carlos o trazia para o lado da casa de taipa onde residia; dava algum milho misturado com farelo; água para que completasse seu repasto, enquanto trazia uma manta de palha, que minoraria o desconforto da cangalha que logo seria colocada, ajustada com cuidado e apertada com grossa chincha de couro cru, para evitar que, com o ir e vir do animal e o balançar da carga, aquela cangalha viesse a escorregar em seu dorso suado.

Tendo o jegue Acabado de comer sua ração, o aguadeiro trazia os quatro barris de madeira, que eram colocados equilibradamente nos suportes de ferro previamente presos na cangalha, de modo a ficarem dois barris em cada lado, talvez tivessem capacidade para vinte ou trinta litros de água cada um.

Aos poucos a manhã se fazia raiar, ouvindo-se pouco a pouco o chilrear dos muitos pássaros que viviam na região: garrinchas, Bem-te-vis, papa-capins, viuvinhas, sanhaços, azulões, que formavam a orquestra indescritível e deliciosamente agradável aos ouvidos dos que tem a ventura de estar de pé nas primeiras horas da madrugada, cujos maestros eram os diversos galos das redondezas, que conduziam o concerto à diversas distâncias, sem no entanto perder a sincronia da bela música que executavam em meio aos arvoredos, arbustos e grande variedade de perfumes naturais que invadem os pulmões daquele rapaz, que àquelas horas, já se botava para o chafariz ou riacho mais próximo, afim de encher seus barris e iniciar o trabalho de abastecer as casas de sua freguesia.

Atendendo a uma boa quantidade de fregueses, Zé Carlos conduzia seu jegue indo e vindo, a encher os barris e os transportar para as casas que servia com seu trabalho, dia pós dia, mês pós mês, anos pós anos.

Aquele dia então amanhece frio, mas ensolarado, com uma paisagem formada não mais, apenas pela vegetação, pelos cheiros vindos dos laranjais abundantes e próximos, ou pelo cantar dos pássaros. Começam a aparecer as primeiras pessoas que se dirigem aos seus lidares diários; as lavadeiras que se dirigem ao rio com suas bacias de roupa por lavar; outros aguadeiros que lhe cruzam o caminho, no mesmo ofício, no mesmo mourejar; os homens da ferrovia que se dirigem para a oficina a fim de desenvolverem seu ofício de fazer reparos em locomotivas e vagões; pãozeiros, que ofereciam de casa em casa, aquele alimento tão do cotidiano de pobres, ricos ou “remediados”;trabalhadores outros, como os dos curtumes, dos trapiches, ofícios enfim, comuns a Alagoinhas fumageira e coureira dos inícios e meados do século.

Assim, homens, mulheres e crianças… Sim, crianças indo e vindo, de diversas idades, envergado diversas fardas escolares, davam o tom daqueles dias de inverno, se apresentando para as diversas atividades que cabia a cada um levar a termo, em todo o dia.

E o jegue? Ah, o jegue… Quem visse de longe, até poderia dizer que era um animal dócil, acostumado a transportar aquela carga; ajustado aquele ir e vir diário, em seu passo miúdo e constante… Ah, aquele jegue! Era um ser de pequeno porte, rijo, bom para transportar pequenas cargas, de grande utilidade para o homem simples que dele precisasse para atividades que não exigissem grande força muscular; de grande utilidade, mas de temperamento forte e tenaz, com manias e matreirices únicas.

Naquela manhã de terça ou quarta feira, não se sabe ao certo, Zé Carlos talvez estivesse fazendo a segunda ou terceira viagem do dia, no encalço de seu sustento, em um farfalhar constante, de encher e esvaziar barris; de carregar e descarregar os vasilhames, levando-os e despejando-os nos recipientes da freguesia; de tocar o jumento e, exigir dele empenho que, especialmente naquele momento, o animalzinho não se dispunha a obedecer.

Entre chicotadas e imprecações, iam-se os dois em um caminhar lento, nervoso, mas, até ali, sem percalços. Seguiam ambos pela extensa rua 2 de julho, pouco depois da movimentada Estação Ferroviária, na direção do centro.

– Jegue!

 Vociferava o rapaz, aos ouvidos insubmissos e lenientes do animal, quase louco de cólera, vendo passarem-se as horas e apertando o tempo para cumprir o dever com seus fregueses:

– Anda, jegue dos diabos! Táááá! Estalava o chicote e o animal pouco avançava, o que aumentava ainda mais o desconforto do pobre homem.

– Tááááá! Tááááá! Jeeegue! Gritava o aguadeiro.

– Táááá! Zip!

– Ai moço! O senhor me machucou!

Entre uma chicotada e outra, já se interpunha uma colegial. Uma garota, de seus doze ou treze anos presumíveis, fardada, saia e blusa bem engomadas, indignada por ver aquele animal tão surrado, em baixo de tão grande carga, se lança sobre o homem encolerizado, que não tivera tempo de reter o braço e, deixa um lapo de relho em suas costas!

– Arre menina; não basta este jegue dos diabos e você agora para me trazer mais desgosto? Que vou dizer a tua vó? Como me explicar aos teus tios, quando for a vez de entregar lá, a água?

Se inquietava e lastimava o homem, acabrunhado por ter lapeado a jovem com seu relho e, se sentindo culpado de ter interrompido o caminho da garota para a escola, o que lhe custaria um dia de aula, pois não poderia entrar no Colégio das Freiras onde estudava, com a blusa suja e as costas machucadas.

 

José Jorge Andrade Damasceno é mestre em História Social (UFBA), doutor em História Social (UFF) e professor da UNEB

 

Foto: Internet – Diogo Melo 

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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