Nos braços do povo: imagem acompanha cortejo pela primeira vez

Até sete anos atrás, em dia de lavagem, a imagem do Senhor do Bonfim descansava dentro da igreja, resguardada de seus fiéis, como se a fé de um milhão de pessoas fosse capaz de fazer-lhe mal. Eis que, na segunda quinta-feira de 2008, dia 10/1, o padre Edson Menezes abriu uma janela no alto do templo e mostrou a imagem para a multidão. O povo ovacionou e o dia ficou marcado.

Pelo visto, padre Edson ainda não está satisfeito. De novo, resolveu inovar. Em vez da aparição no alto da basílica, pela primeira vez na história, em 266 anos de devoção, a imagem de Senhor do Bonfim vai participar diretamente da festa. Do início ao fim, será levada nos braços do povo. Sairá em procissão, conduzida pelos fiéis, desde Igreja da Nossa Senhora da Conceição até a Colina Sagrada. Desde as 7h, a imagem estará exposta na Conceição.

A imagem do Senhor do Bonfim vai cumprir o percurso de 8 km em um andor, que parte às 8h. O tradicional Cortejo das Baianas, boa parte formada pelo povo de santo, deve vir logo atrás. Provavelmente vai se misturar aos fiéis católicos que acompanharão a imagem. Um momento nunca visto antes, em uma festa historicamente impulsionada pelas religiões de matriz africana.

“A festa do Bonfim é de todos. Uma grande manifestação de fé do nosso povo, uma enorme celebração. Em um mundo marcado pela divisão, pela dificuldade de diálogo entre as religiões, o cortejo ensina uma grande lição”, afirmou padre Edson ao CORREIO. “Minha intuição de pastor me mostrou que a Igreja precisava participar disso mais diretamente. É o que estou tentando fazer ano a ano”, disse o religioso.

Foi padre Edson que criou a Caminhada Lavagem de Corpo e Alma, que a partir de 2014 passou a sair na frente das baianas, gerando certa polêmica. “Alguns antropólogos foram contra. Aos poucos mostramos que a nossa intenção era integrar. Saímos antes para também chegar antes e poder acolher o Cortejo das Baianas com todo o carinho”, justificou.

Quartinhas

Como todos os anos, com ou sem polêmica, as baianas vão com fé. Nas mãos, as vassouras “virgens” para lavar o adro da igreja. Com roupas típicas e munidas de suas quartinhas – vasos com flores, alfazema e água de cheiro, elas sempre foram as grandes estrelas da lavagem. Tanto que os fogos de artifício costumam anunciar sua chegada na Colina. Dessa vez, o próprio Bonfim será saudado.

Muitas servem aos dois senhores: do Bonfim e Oxalá. Não estão preocupadas. “Eu sou devota dos dois. O que importa é a fé. Minha religião é o respeito”, afirma Maria Luísa de Sousa, 57, conhecida como Tia Lu.

Outras enxergam a mudança com desconfiança. “Inovar é bom. Mas vai ter uma hora que se inovar demais as baianas vão acabar”, ponderou Rita Santos, presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé e Receptivo (Abam).

Rita reclama não da introdução da imagem do Senhor do Bonfim no cortejo, mas da falta de apoio às baianas. “Este ano vão sair só 40 (baianas). E sem apoio quase nenhum. As pessoas têm que entender que a festa do Bonfim não é só católica. Principalmente no dia da lavagem”, diz Rita. Por outro lado, um dos coordenadores da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro considera a presença de Senhor do Bonfim na procissão uma possível arma contra a intolerância religiosa.

“Acho que isso vai enriquecer. Tem que acabar de vez com o preconceito. O que tem que predominar é o branco”, afirma Lázaro César Pereira. Historiador da Ufba, Milton Moura considera a atitude de colocar a imagem no cortejo um símbolo perfeito do que representa a festa. “Durante séculos, o Bonfim representou a integração do catolicismo com o candomblé. Por que não podem andar lado a lado e abraçados?”, opina Moura.

 Proibições 

O fato é que, desde que começou a acontecer, na primeira metade do século XIX, a Lavagem do Bonfim chegou a ser proibida pela Igreja, que passou a fechar as portas do templo para o povo. O arcebispo dom Luís Antônio dos Santos decretou o fim da festa em 1889. A população só voltaria às ruas mais de uma década depois do ato.

Milton Moura diz que a igreja não se fechava para a lavagem, mas apenas resguardava o templo por conta da quantidade de fiéis. “Ninguém quer ver a sua casa destruída pelos visitantes”. Por isso, na década de 1940, colocou-se o gradil da basílica, que até hoje fica fechado. “Mantemos assim para preservar o patrimônio”, justifica padre Edson. Com  Senhor do Bonfim no meio do povo, do início ao fim, o templo pode se manter fechado sempre, mas a Igreja se abre como nunca.
Fonte: Correio 24h

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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