Natal material – Marcelo Coelho
Como ideia de marketing, vai ser difícil acharem outra melhor. Uma companhia aérea organizou uma linda surpresa para seus clientes, e o filminho faz sucesso na internet.
Para começar, o passageiro faz seu check-in num daqueles terminais eletrônicos de autoatendimento. Uma pausa, e surge a imagem do Papai Noel. Ele repete o nome do passageiro em voz alta, emite a risada típica e pergunta-lhe o que quer ganhar de Natal.
Ouve a resposta: um computador, um perfume, uma prancha de surfe. Ri novamente, e deseja boa viagem ao passageiro.
Os pedidos foram registrados, e imediatamente se transmitem ao pessoal de apoio, no aeroporto de destino. É de supor que a viagem seja razoavelmente longa. O filme mostra, em todo caso, as horas de trabalho frenético da equipe da tal companhia aérea.
Eles compram, embrulham e etiquetam tudo o que foi pedido pelos viajantes. Quando estes desembarcam no aeroporto, encontram junto com as malas, na esteira de bagagem, perfeitos pacotes com fitinhas. Dentro, está o que pediram a Papai Noel.
Não fica nisso. Neve artificial começa a cair no salão das esteiras, a porta automática se abre e… ho, ho, ho, Papai Noel em pessoa aparece e é aplaudido pelos viajantes.
Como delírio natalino, e como estratégia para agradar os clientes, a proeza é praticamente insuperável. Só se, durante o voo, dessem um jeito para que o trenó do bom velhinho passasse, em velocidade supersônica, ao lado do avião, de modo a ser visto das janelas.
Insuperável, e também irrepetível. No ano seguinte, não haveria de ser pequeno o número dos que, no check-in, arriscassem pedir um Porsche ou um Balenciaga de
presente.
Com alguma morbidez, imagino se tudo desse errado: um desastre aéreo de grandes proporções, e os pacotes natalinos girando órfãos, na esteira, indefinidamente…
Mas é isso que a iniciativa, no fundo, quer esconjurar. Trata-se não apenas de fazer um agrado especial aos clientes, mas também de mostrar o alto grau de organização e confiabilidade da empresa.
Continuamos, claro, sem acreditar em Papai Noel. Mas acreditaremos um pouco mais naquela companhia aérea, a quem tentaremos retribuir, se não com fidelidade eterna, ao menos com um excelente comportamento no voo de volta.
O importante, em todo caso, não foi o valor dos presentes recebidos. Nesse ponto, não concordo totalmente com quem reclama da excessiva mercantilização que predomina nesta época do ano.
Tudo é feito para aumentar as compras, não há dúvida. Os produtores de perus parecem mesmo ter inventado este ano uma espécie de ceia antecipada, tendo como pretexto a “inauguração da árvore de Natal”. Como a data coincide, pelos meus cálculos, com a do Dia de Ação de Graças americano, fico imaginando se não querem liquidar por aqui mesmo o excesso de aves que sobrou de alguma exportação mal sucedida.
Não importa. Se o Natal não se resume à troca de presentes, cabe perguntar sobre o seu significado religioso. Nada mais comum, entretanto, do que entender a religião como uma troca de presentes também.
O jogador agradece a Deus pela vitória de seu time, como se os adversários fossem, sabe-se lá, pecadores ou infiéis. Antes de entrar na água, o banhista faz o sinal da cruz. A família do doente reza por sua recuperação, e, na hora da aterrissagem, o pensamento de muitos passageiros se volta para os céus.
A criança comportada espera atenção especial do Papai Noel; também quer coisa parecida, agora ou depois da morte, muita gente que busca seguir o caminho do bem.
Mesmo que a religião tenha formulações mais sofisticadas do que esta, não chega a ser um problema que as coisas se passem desse jeito.
O presente que se pede nunca é apenas um presente. É sobretudo uma relação de confiança –não apenas voltada para aquele a quem pedimos, mas ao mundo de forma geral. Trata-se de acreditar, não em Deus ou em Papai Noel, o que para mim nunca fez muita diferença, mas no futuro.
É pensar que o mundo, as coisas, a vida, de alguma forma, e de vez em quando, sejam maleáveis aos nossos desejos. E ter, quando isso acontece, algum sentimento de gratidão.
A quem? Por que não, por exemplo, ao fulano da companhia aérea que inventou aquela jogada de marketing?
Na materialidade de um brinquedo, de uma agenda, de um iPhone, algum afeto ganhou forma. Da noção vaga ou absoluta de um Criador todo-poderoso, racional, arbitrário e cego, surgiu a figura de um ser feito de carne, e que sofreu.
Bem material, sem dúvida, esse Jesus Cristo. Talvez ensine que há algo de divino no olhar de todos os homens.
Marcelo Coelho, jornalista, é membro do Conselho Editorial da Folha. É autor dos romances “Patópolis”, “Jantando com Melvin” e “Noturno” e das coletâneas de ensaios “Tempo Medido”, “Gosto se Discute” e “Trivial Variado”. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas na versão impressa de “Ilustrada” e mantém um blog no site da Folha.