‘Nada blinda o preto do racismo’, diz Glória Maria em primeira participação no Roda Viva

Em sua primeira entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, a jornalista Glória Maria, de 72 anos, afirmou que “nada blinda o preto do racismo” e relatou episódios em que suas filhas foram vítimas. A uma bancada composta apenas por mulheres, a apresentadora falou sobre a recuperação de um tumor no cérebro, relembrou coberturas feitas nos mais de 40 anos de jornalismo e revelou que vislumbra uma viagem ao espaço para coroar a carreira.

— Nada blinda preto de racismo, ainda mais a mulher preta. Nós somos mais abandonadas, discriminadas. O homem preto não quer a mulher preta. Você tem que aprender a se blindar da dor. Se você for esperar o blindamento universal, você está perdida — disse Glória ao ser questionada se a fama a blindou do preconceito.

Glória mencionou situações em que as filhas Laura e Maria sofreram preconceito. A primeira ouviu de um amigo que “a cor dela era feia”. A segunda escutou, também de um colega na escola, “você, sua macaca, não fala nada”.

— Isso não vem da criança, vem da família. E a família não vai mudar. — Quando ele (amiguinho) falou, queria machucar. E a maneira que tinha é para machucar era ofender racialmente. Isso que acho uma coisa trágica. Se ele sabe que chamar de macaca é uma ofensa racial, é porque foi ensinado.

Primeira jornalista brasileira a cobrir uma guerra, ela afirmou que voltaria a trabalhar in loco no conflito em curso na Ucrânia, se não tivesse sido acometida pelo tumor no cérebro em 2019. Ela participou da cobertura da Guerra das Malvinas, em 1982, após insistir para ir ao ver apenas homens escalados. Mas diz que testemunhar a tomada da embaixada japonesa no Peru foi ainda mais complicado.

— Foi um desafio pra mim. Só iam homens o tempo inteiro. Eu queria ir mas estava com medo — afirmou. — A guerra é uma coisa que me deu muito medo, mas não deixei que ela me paralisasse. Se eu tiver que ir hoje para uma guerra, só não vou depois dessa minha experiência de saúde. Se eu não tivesse passado por isso, eu iria.

Glória foi submetida a uma cirurgia para retirada do tumor há mais de dois anos. Enquanto se recuperava na UTI, conta, recebeu uma ligação do rei Roberto Carlos e afirma que nunca pensou em morrer.

— Não pensei na possibilidade do fim nem por um segundo — afirmou. Se eu não tivesse descoberto naquele momento, o tumor me mataria em 15 dias. Criou um edema que inflamou, me fez ter uma convulsão. Vivi a primeira benção porque não me deixou sequelas. Tinha 30, 40%  de chance de sobreviver e 20% de sobreviver sem sequelas. Mas não tive medo. A vida é isso. Você está vivo para passar por todo tipo de experiência. É que o ser humano tem a tendência de querer viver num mundo cor de rosa.

A apresentadora relembrou reportagens marcantes em seus mais de 40 anos de carreira: quando andou na Ferrari de Ronaldo Fenômeno, fumou maconha na Jamaica e presenciou um festival de pesca na Nigéria, que classifica como a “mais transformadora que já viveu”.

Sobre o telejornalismo, a apresentadora afirmou que forjou o seu estilo com o crescimento da televisão, já que começou em uma época em que os repórteres não apareciam. Isso, segundo ela, permitiu a ter liberdade de criação. Como diferencial, citou o fato de que suas reportagens são feitas à base do sentimento e do ser humano.

— Comecei com o crescimento da televisão. Não tive que aprender. Comecei sem que o repórter aparecesse no vídeo, não tinha nenhuma referencia. Fui criando o meu jeito, como outros — disse. — O que me interessa, sempre me interessei, é gente, cultura, histórias. Minhas matérias são feitas a base do sentimento, do ser humano. Quero conhecer almas, me preocupo com emoções.

A jornalista destacou que uma de suas principais virtudes, usadas na profissão, é saber ouvir. Credita à avó o aprendizado da escuta, a partir das histórias repassadas de geração a geração em sua família de origem humilde.

— Se eu não ouvisse muito bem não saberia o que escrever, o que falar. Esse dom de ouvir é uma coisa que sempre tive. Mas não dá pra ouvir o que não te faz crescer. Aprendi a selecionar o que escuto. Não dá pra ficar ouvindo aquilo que não vai te levar a lugar nenhum. Não perder tempo ouvindo o que não vale a pena e o que não interessa. A vida te ensina, te mostra. as lições que aprendi da minha vó me fizerma conhecer o que vale a pena e o que não. Ouvir para mim é a coisa mais importante da vida. Perder tempo não dá.

Glória respondeu ainda que nunca fui censurada na profissão e revelou seu desejo para uma futura pauta: viajar a Marte – ou ao menos ao espaço, como as recentes expedições capitaneadas pelas empresas dos bilionários Jeff Bezos e Richard Branson.

— Estou querendo ir para Marte numa dessas máquinas aí. Seria um grande presente da Globo, tomara que tenha algum poderoso ouvindo a gente — brincou.

Indagada se é possível o lançamento de um biografia sua, a jornalista não hesitou e rechaçou qualquer chance.

— Minha vida é imbiografável. Vou deixar biografia para quê? Eu não sou exemplo de nada. Tudo o que é meu e que pode ser dito ou escrito está aí.

Fonte: O Globo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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