Miguel Nicolelis: “É um consenso mundial que o Brasil hoje é a maior bomba-relógio da pandemia”

Desde dezembro, o neurocientista e professor titular da universidade Duke Miguel Nicolelis vem propondo que se crie uma Comissão de Salvação Nacional, contando com lideranças do Congresso, STF, governadores, entidades científicas e da sociedade civil, para que se tomem as decisões mais adequadas no manejo da pandemia em todos os aspectos.

“O momento é absolutamente crítico, é como se estivéssemos em Fukushima há alguns anos e o cara na sala de controle percebesse que o reator nuclear saiu completamente de controle e havia se iniciado uma reação em cadeia irreversível. É mais ou menos essa a metáfora que eu faria neste momento. É uma situação cataclísmica, e a OMS sabe disso”.

“Nós somos o maior laboratório a céu aberto do mundo para que um número de mutações gigantesco, estamos falando de bilhões de mutações, levem a possibilidade do aparecimento de variantes mais infecciosas, mais transmissíveis e mais letais. Nós temos a possibilidade de sermos pioneiros na confecção de um novo vírus, um covid3 aí, porque se você começar a misturar RNA de diferentes vírus e haver um processo de hibridização, você pode facilmente criar uma espécie, um novo vírus que aí sim seria uma ameaça a todo o planeta, porque nenhuma das vacinas teria ação”

“Nós precisamos de um lockdown nacional rígido real de pelo menos 21 dias. Isso é apoiado pela comunidade internacional científica. Um lockdown onde você restrinja o fluxo pelas rodovias e o espaço aéreo brasileiro e internacional, para evitar novas variantes. Nós recebemos a variante da Califórnia semana passada, muito provavelmente vamos receber a de Nova Iorque também, já temos a do Reino Unido, da África do Sul, temos a nossa própria, provavelmente vamos ter mais variantes brasileiras. Junto com isso precisamos aumentar o número de pessoas vacinadas na ordem de dez vezes”

“As escolas deveriam estar fechadas, elas nunca deveriam ter aberto. A maior irresponsabilidade cometida nesse país foi a abertura de escolas no meio de uma pandemia fora de controle. Essa decisão é condenada internacionalmente pelos maiores centros de pesquisa do mundo”. 

“Os óbitos e casos americanos estão caindo para o que foi o equivalente à primeira onda deles, no começo do ano passado. Bem abaixo do que aconteceu no começo do inverno. Então nós somos nesse momento o epicentro da pandemia mundial e com os números contrários ao resto do mundo. Aqui estão subindo e com a possibilidade de milhões de mutações ocorrerem e diversas variantes surgirem por causa desse descontrole do espalhamento do vírus.

Enquanto isso, a maioria das sociedades e economias equivalentes ao Brasil fizeram medidas corretas, como o lockdown na Europa – que perdura na Alemanha, pela terceira vez seguida, e no Reino Unido. Você só precisa ver as curvas e como as medidas funcionaram na contenção do vírus. E agora com a vacina melhorou mais”.

“O Brasil tinha plenas condições de ter sido um dos melhores exemplos do mundo por causa do SUS e nossa campanha de vacinação, que traz vários cases de sucesso. Esta expectativa não era só minha, mas da comunidade científica internacional”.

“O governo é completamente responsável. Há razões para várias aberturas de processo na Corte Internacional. Ninguém esperava a calamidade e a inépcia com a qual o governo brasileiro tratou essa pandemia. Vai ser um case oposto, negativo, do que não fazer na pandemia. A única coisa que Bolsonaro poderia fazer era renunciar porque claramente não tem dignidade para o cargo que ocupa. Tava na hora dele pedir o boné”.

“Tirando o genocídio indígena e a escravidão, este é o evento mais danoso do ponto de vista humanitário e de perda de vidas de nossa história. A sociedade brasileira precisa deixar o hedonismo de lado porque o hedonismo parece ser maior que o instinto de sobrevivência por aqui. Além do desmando do governo federal, nossa atitude enquanto nação e sociedade deixa muito a desejar nesse momento”.

“Ninguém quer vir pra cá. E quem é brasileiro e viaja pelo mundo está sendo tratado como se fosse proveniente de uma colônia de leprosos da Idade Média. É isso que vai acontecer daqui pra frente”.

“Não estou apreensivo com o presente, estou apreensivo com o futuro, se nada fizermos. Se a gente deixar o braço solto nós vamos chegar a 500 mil óbitos no começo do ano que vem ou mais rápido que isso”.

“Temos 500 mil funcionários de saúde infectados, é um recorde mundial. Uma morte a cada 19 minutos. A cada perda, perdem-se dezenas de atendimentos que poderiam ser feitos por dia”.

“Um dos erros gigantescos na conduta da pandemia, enumerados por especialistas ouvidos pelo New York Times, foi o de se criar comitês científicos nos quais membros da comunidade de negócios detêm mais poderes em decidir que a voz da ciência e medicina. Isso foi repetido no Brasil por alguns governos que ainda acham que podem manter escolas e cultos em aberto com as UTIs próximas do colapso. Quando Biden empoderou o comitê cientifico, mudou tudo no país. Os EUA estão começando a ver uma luz”.

“A cidade mais rica do Brasil nunca teve um lockdown real. Nunca fez o que era preconizado nem mesmo pelo seu comitê científico, que foi rejeitado pelos políticos, pelo governador, que tem na assessoria econômica a voz mais alta do controle da pandemia”

“Quando a história sobre esta pandemia for contada, São Paulo surgirá como um dos piores manejos da crise desde o começo. Se São Paulo tivesse se fechado como Wuhan, teríamos evitado grande parte dos problemas. Até junho do ano passado São Paulo foi o grande disseminador do vírus pelo país”

“Governador Doria, é preciso ouvir seu comitê e trancar São Paulo, não tem como evitar. Se o HC colapsar -e a taxa de ocupação da UTI já está acima de 80%-, o Brasil colapsa integralmente e aí vai ser bem difícil. Não quero nem comentar a série de colapsos que se seguiria, porque traria coisas irreversíveis por muito tempo”.

“É evidente que o governo federal rateou, fez todas as besteiras possíveis. Nós poderíamos ter dezenas de milhões de doses da Pfizer e de outras vacinas que foram oferecidas ao Brasil.

As vacinas querem vir para cá porque o índice de adesão é muito mais alto proporcionalmente per capita do que em outros países, como por exemplo nos EUA. Então todas as empresas farmacêuticas têm o Brasil como um mercado preferencial porque elas sabem que elas vão vender um número de doses muito grande, e como tudo leva a crer que será uma vacina que precisa ser renovada anualmente, como a da gripe, você garantir o mercado brasileiro é um grande breakthrough para sua empresa, você está falando de bilhões de dólares anuais. O Brasil tem uma das maiores reservas em dólar no mundo. Pra que serve essa reserva? Entre outras coisas pra comprar vacinas como essas”.

“O Brasil pode ser um dos últimos países do mundo a sair desse problema [pandemia]”.

“Os cientistas confirmaram que a AstraZeneca, a Pfizer e aqui no Brasil a Coronavac, as três neutralizam a variante brasileira. A verdade é que isso pode ser uma notícia boa temporariamente, porque se outras variantes aparecerem, as vacinas podem deixar de ter efeito”.

“Não foi a variante da Amazônia que criou o que nós estamos vivendo. Foram as eleições. Ninguém se opôs à realização delas. Os cientistas falaram que elas tinham que ser adiadas, mas ninguém nos deu ouvidos. Depois vieram os eventos natalinos, as festas de final de ano e o carnaval. Mesmo com 1.500 pessoas morrendo – e talvez hoje e amanhã a gente bata o recorde, é muito provável que nos próximos dias a gente passe a 2000 óbitos por dia -, as pessoas continuam a festejar. Nós estamos jogando futebol. Amanhã começa campeonato com times indo pra cima e pra baixo e ninguém fala nada, sendo que estes podem ser eventos disseminadores gigantescos”.

 

Fonte: O Estado de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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