IX. – Histórias e memórias de uns tempos vividos em Salvador – Um telegrama, o embarque no “Pirulito”- José Jorge Andrade Damasceno

Os dias posteriores ao ribombar dos travesseiros foram de acomodações das placas tectônicas movimentadas há já algum tempo, mas, sobretudo, naquela semana iniciada em 22 de agosto de 1976, aliás, o último domingo da vida do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Como seria de se esperar, várias reuniões foram feitas entre a direção interna e o grupo de senhoras abnegadas, caridosas e beneméritas da sociedade soteropolitana, que proviam os recursos para a manutenção do Instituto de Cegos da Bahia, no sentido de decidir o que fazer com aqueles insubordinados/mal-agradecidos cegos que provocaram a hecatombe comportamental, brevemente descrita no arrazoado anterior.

Este escrevedor, embora não houvesse liderado aquela rebelião de travesseiros – ao contrário, fora mero coadjuvante -, mas, tido como um dos cabeças, talvez por conta de sua disposição de tudo fazer para voltar para casa, fora colocado em isolamento, no “horário do silêncio”, tendo sido colocado em um aposento adaptado em um banheiro sem uso, com direito a latrina para uso durante a noite.

Tal providência não foi sem razão. Em ocasião não muito distante daquela, ele fora colocado em isolamento, em um quarto localizado no quinto andar do prédio, fechado a chave, sem janelas, apenas com um basculante; para tanto, recebera um penico, a fim de depositar os resíduos líquidos, vertidos durante a noite. Certo dia, sabe-se lá por qual razão, um outro resíduo fora ali depositado e, sem querer passar toda aquela noite  aspirando o cheiro exalado por aquele produto, resolveu lançá-lo pelo basculante.

Na manhã seguinte, após o café frugal servido no estabelecimento de encarceramento de cegos, se dirigira para a Kombi que os levaria para as escolas.

Sabendo do risco de pisar no seu próprio resíduo, logo tratou de cuidadosamente se acomodar no banco da frente do referido veículo, enquanto os outros colegas, como de hábito, passeavam em volta da Kombi, até que o motorista viesse para os conduzir aos seus destinos.

Ao se aproximar, o jocoso motorista dissera:

– Bora, cegada!

Como se tivesse ouvido um comando de quartel, a turma se esgueirou para dentro daquele automóvel, se acomodou e, o motorista iniciou o trajeto.

Quase imediatamente, iniciou-se os “fun, que fedor!” Ao que seu Brás acrescentou:

– Que pôrra! Quem foi o fila da puta que pisou em merda? Foi você, Jorge Grande?

– Eu mesmo não, seu Brás! Eu nem daqui saí! Respondeu o interpelado, com a seriedade de uma estátua de mármore!

Mas, quando fora deixado no Iceia e, transpusera o seu portão, prorrompera em estrepitosa gargalhada, explosão que, certamente, teria deixado perplexos os circundantes!

Assim, os dias que completaram agosto e iniciaram setembro, passaram ainda mais lentamente. No imediatamente posterior a algazarra, serviram para repercutir a traquinagem e fazer troça da chefe e sua postura ridícula diante do episódio. Depois, veio a desclassificação no refeitório, um dos poucos lugares de sociabilidade daquele internato, pois ali, não se fazia separação dos alunos, conforme o sexo.

Como demonstração de autoridade e, para dar exemplo aos demais que eventualmente quisessem perpetrar novas rebeliões perturbadoras da boa ordem da casa, o rebelde deixara de ocupar a primeira mesa – considerada como de “elite”, juntamente com mais três outras. Este narrador foi tirado da dita mesa da “elite” – onde todos faziam os seus pratos, embora com limites e, composta por alunos que “estudavam fora e cursavam o ginásio”, que tinham alguma desenvoltura no que tange à coordenação motora -e fora inserido na mesa dos que já encontravam os pratos servidos”, o que significava a retirada de qualquer possibilidade de manobra para ter um pouco mais de comida no almoço.

Enfim, em uma manhã ensolarada, talvez já fosse setembro, este rebelado saiu no primeiro turno dos que iriam para a escola – o seu era o segundo -, com o firme intento de lá permanecer até o fim da tarde, se configurando mais uma reação àquilo que entendia ser arbitrariedade, perpetrada pela chefe contra si.

Depois da magra refeição matinal, composta por um caneco esmaltado de café preto, um terço de uma vara de pão com margarina, vez por outra um pedaço de banana da terra e, um prato daqueles de servir doce, com um mingau que não era possível saber qual era o seu feitio, dirigiu-se ao veículo conduzido por seu Brás, abordo do qual fora levado até o Iceia, onde ficara toda a manhã, merendando fartamente no intervalo, guardando parte daquela merenda – pão de ovos com mortadela e Nescau – para lhe servir de almoço ao meio-dia.

E assim, foi. No horário que deveria voltar para o almoço no Instituto, o rebelde se enfiou na biblioteca da escola, só saindo dali, para assistir a primeira aula da tarde. Segundo os seus planos, só retornaria ao final do dia, por não dispor de qualquer alternativa para lançar mão.

Corria a tarde morna e, as aulas fluíam sem tropelias. Logo após  o intervalo, por volta das quinze horas e trinta minutos, alguém pede licença ao professor; chega até aquele aluno e diz para sair um pouco, pois o pessoal do Instituto estaria ali. Levanta-se e, ao chegar no corredor, ouve de alguém que talvez fosse funcionário do Iceia:

– Pegue as tuas coisas. Seu Brás está lá fora.

Entendendo quase imediatamente que o seu plano de alguma maneira funcionara, fora surpreendido com a presença de sua mãe, logo que chegou no dito Instituto. Orientado a subir para pegar os seus pertences, que já estavam arrumados, cerca das dezesseis horas, já deixava para trás aqueles muros que o mantiveram em regime de reclusão por todo àquele tempo.

Ao descer a Ladeira de Água Brusca, com o objetivo de alcançar o Largo de Meninos e, na Jequitaia, pegar um transporte que os levasse até a estação da Calçada, dona Amanda disparou:

– Achei que me chamaram para levar o seu caixão!

Aquela reação tinha um motivo: dona Amanda havia recebido um telegrama, convocando-a para comparecer com urgência em Salvador, para tratar de assunto referente ao seu filho, então internado no ICB. Ora, há pouco mais de dois anos, ela houvera perdido o seu filho mais velho para “aquela doença ruim”, como dizia, quando se referia ao câncer. E, quando o outro aprontava alguma, ela vociferava:

– O que era bom morreu. O outro, ficou para me dar trabalho!

Nem precisa dizer que a tal frase fora repetida, naquele trajeto entre a “jaula de cegos” – como carinhosamente era cognominado o Instituto – e as imediações da Feira de São Joaquim, de onde mãe e filho embarcaram em um ônibus que os levara até a calçada.

Mas, para o filho que estava há poucas horas de seu torrão natal, pouco importava se o seu irmão falecido era preferido em detrimento dele.

O que importava mesmo é que, ele, finalmente, embarcaria no Pirulito e, ao chegar na estação São Francisco, estaria pisando em um espaço que já lhe era familiar. No entanto, a viagem foi concluída antes da aguardada estação, uma vez que a “agulha” estava fechada, o que obrigara o trem a esperar a sua abertura, para poder prosseguir. Como o lugar onde se dera a interdição temporária era próximo da moradia de dona Amanda, ela desceu ali mesmo, talvez a uns trezentos metros do seu modesto lugar de morada.

Ah, quase dez da noite. Que dia maravilhoso foi aquele, dia que teve um desfecho tão inesperado, quanto diferente do anterior: não dormira trancado a chave, como dormiriam os sentenciados de grande periculosidade!

José Jorge Andrade Damasceno – Professor Titular na Universidade  do Estado da Bahia (UNEB), no Colegiado de História do Departamento de Educação – Campus II, Alagoinhas.

E-mail: historiadorbaiano@gmail.com

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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