Hegemonia perde força – Gaudêncio Torquato
A luta, vista de perto, deixa ver um embate engalfinhado por espaços na estrutura governativa entre dois gigantes partidários: PMDB e PT. Sobre o primeiro colou-se a pecha de fisiológico, onipresente em quaisquer governos.
Sobre o segundo, conta-se um pouco de tudo, desde a versão de que deixou de ser “vestal” para se transformar em pecador igual aos outros, ao mito de que, à moda do Criador, teria plasmado a abóbada que adorna os céus dos nossos trópicos e aberto, “pela primeira vez”, a torneira da bem-aventurança, despejando felicidade a milhões de brasileiros saídos do inferno para o gozo do paraíso. Ambos são parceiros na construção da aliança que pôs Dilma Rousseff no comando da Nação.
Desde 1986, quando elegeu 22 dos 23 governadores de Estado, 260 deputados federais e 44 senadores, o PMDB tornou-se a maior organização partidária, elegendo, em eleições seguintes, o maior número de prefeitos e as bancadas mais cheias nas áreas legislativas- federal, estadual e municipal.
De lá para cá, acumulou extraordinária capilaridade, fazendo-se presente nos rincões distantes e se tornando o pêndulo de qualquer governo.
Desde 1984, quando foi criado sob o epíteto do “socialismo democrático”, que hoje se esconde sob o esparadrapo de feridas abertas pela Ação Penal 470, o PT se esforça para liderar o ranking da política.
Puxando os cordões do poder pelas margens sociais, conseguiu chegar, por três vezes, à presidência da República, e esse ano busca angariar a quarta vitória, com a qual reforçará a base do projeto mais longo (e vertical) de poder da história contemporânea: dirigir o Brasil por um tempão. Vertical na perspectiva de concentrar o poder nas próprias mãos, evitando dispersão de forças.
Vista de longe, a esganiçada contenda entre os dois atores mostra que ambos não lutam apenas para conquistar espaço na Esplanada dos Ministérios (o PT comanda 17 Pastas e o PMDB apenas 5). Trata-se de algo mais abrangente e que, pouco a pouco, acirra os ânimos dos parlamentares plantados nas legendas governistas. O busílis tem nome: o projeto hegemônico do Partido dos Trabalhadores.
O escopo pode ser assim descrito: alijar o principal parceiro, o PMDB, do centro do poder, deixá-lo à margem, transformando-o em partido médio igual aos outros; portanto, de arreio curto e sem condição de alçar vôo em direção ao comando das duas Casas Legislativas, como hoje.
A meta petista PT é eleger, este ano, 130 deputados federais, o maior número de governadores, a mais extensa bancada de deputados estaduais, pavimentando um gigantesco campo que servirá de base para a decolagem de candidatos a prefeitos e vereadores, em 2016, com os quais a sigla resgataria, sob ecos triunfantes, o Volta Lula em 2018, com direito à reprise na reeleição de 2022. O resto, SDS (Só Deus Sabe).
Hegemonia – eis o fulcro do imbróglio entre os maiores partidos políticos. O poder hegemônico engendrado pelo PT é que está em jogo. Tal estratégia começa a esquentar a peroração política. A sensação, no momento, é de que o domínio político e administrativo por uma sigla que abre intensa polêmica, ameaça criar divisões profundas no meio da sociedade.
Ortodoxos chegam a aventar a hipótese de mudança de regime e da instalação de um Estado com extensos braços intervencionistas, a par do controle dos meios de comunicação, caso os petistas consigam realizar seu intento. Vamos à análise. São tênues, para não dizer improváveis, alternativas que apontem para o estreitamento das colunas do nosso edifício democrático.
Governos de partidos únicos, regimes totalitários, visões intervencionistas e modelagens que fecham as tubas de ressonância social são cada vez mais escassas na esfera planetária. A contemporaneidade abre-se para o respiro social e a hegemonia, pelo menos nos termos do passado, não condiz com a atualidade.
Hegemonia expressa domínio, força, poder de mudar, controlar e impor. Denota o predomínio de visão unilateral por parte de um partido ou de um grupo, engenharia que não condiz com o espírito de nosso tempo.
Não se divisa “o fim do poder”, nas condições que o editor-chefe de Foreign Police, Moisés Naim, mostra em seu livro lançado em outubro do ano passado, e, sim, sua degradação, seu arrefecimento. Basta enxergar a teia por onde se move a política.
As crises econômicas, em série; a organização das comunidades de todos os tipos; a elevação do conceito de igualdade entre gêneros; os conflitos no mundo do trabalho; a delinqüência e a violência expandida nos centros urbanos; a queda dos mercados financeiros constituem, entre outros, fatores que alteram a maneira de agir dos Poderes centrais.
As dificuldades enfrentadas pelas administrações públicas, em todo o planeta, impõem novos paradigmas, levando os Poderes a se tornarem fragmentados. O palco da política está mudando. Na esteira da dispersão, antigos Centros de Poder perdem sua capacidade de coordenação e controle.
Os arsenais das democracias enchem-se de armas menores, mas tão eficientes como os grandes armamentos, tendo capacidade de vetar, contrapor, combater e limitar as margens de manobra dos grandes atores.
Essa nova artilharia é composta e suprida por micropoderes, ajuntamentos de pessoas, formados no interior de categorias profissionais, na escala dos gêneros, nas geografias regionais e no espaço das organizações intermediárias. E o que se vê? Governantes, mesmo aqueles que detêm imenso poder, como os nossos, ancorados num modelo presidencialista de caráter imperial, enfrentam vulnerabilidades.
A presidente Dilma, mesmo dispondo de formidável rolo compressor – uma base governista em torno de 350 parlamentares na Câmara – não acaba de ver a aprovação da convocação de 10 ministros?
Moisés Naim pinça um bom retrato: “a figura de Gulliver, amarrado no chão por milhares de minúsculos liliputianos, capta bem a imagem dos governos destes tempos – gigantes paralisados por uma multiplicidade de micropoderes”.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato
Fonte: Blog do Noblat