Guerra na Ucrânia: A dimensão do conflito após 2 meses da invasão pela Rússia
A invasão russa à Ucrânia chegou ontem (24 ao seu 60º dia sem sinal de um fim próximo e com a perspectiva de avanço de Moscou para uma área maior do que a declarada. Nesses dois meses, o conflito deixou, segundo órgãos das Nações Unidas:
- pelo menos 2.435 civis mortos, incluindo 184 crianças, e 2.946 pessoas feridas, cifras que a ONU admite serem muito maiores devido à dificuldade da apuração;
- 5,19 milhões de refugiados, o êxodo mais rápidos desde a Segunda Guerra;
- ao menos 102 locais de importância cultural, histórica ou religiosa destruídos.
A continuidade dos ataques, a dificuldade de acesso aos locais destruídos e a guerra de versões entre Vladimir Putin e Volodimir Zelenski impedem neste momento qualquer avaliação mais precisa dos danos e, como consequência, uma comparação do conflito com outros da história recente da Europa.
Mas, na opinião de Reginaldo Mattar Nasser, professor de relações internacionais da PUC-SP especializado em conflitos internacionais, a guerra da Ucrânia pode ser considerada a mais desafiadora no continente por mexer com a percepção dos países e trazer de volta o temor de que novas disputas possam bater à sua porta.
Conversamos com Nasser para tentar dimensionar o conflito atual:
Qual é a sua avaliação do momento atual da guerra? Estamos na fase que chamamos de guerra de atrito, quando o conflito se prolonga e nenhuma das partes tem condição de impor uma derrota à outra. É muito improvável no mundo de hoje haver, como nas duas grandes guerras mundiais, o esgotamento completo de um dos lados, pela via militar. E nada indica que a Ucrânia aceitará todos os termos da Rússia. Então, à medida que a Otan [aliança militar ocidental] e os Estados Unidos continuarem fornecendo armas, a guerra vai se prolongar.
Passados dois meses, como avalia a dimensão deste conflito em comparação a outras guerras? É preciso olhar por vários ângulos. Pela questão humanitária, em termos de quantidade de refugiados, não há outra similar a essa desde a Segunda Guerra. Em número de mortos, neste momento é difícil estimar. Sobre a guerra de Kosovo, que aconteceu em 1999 e guarda muitas semelhanças com esse conflito, até hoje não há dados precisos —estimam-se entre 9.000 e 12 mil mortos.
Fala-se na guerra da Bósnia [que matou cerca de 100 mil pessoas entre 1992 e 1995], mas ela tinha um perfil diferente: era mais próxima de uma guerra civil, com unidades militares muito autônomas. Eram ações dispersas e fragmentadas, não havia um comando centralizado nem esse tipo de negociação que, mesmo de forma precária, acontece no caso da Rússia.
Kosovo talvez seja a guerra mais importante para entender a de hoje. Principalmente porque foi um momento em que a Otan agiu. Essa ação marcou muito a percepção da Rússia, e Putin sempre cita Kosovo como um parâmetro. O argumento de que é preciso proteger uma população, como os EUA e a Otan fizeram em relação aos kosovares, a Rússia usou na Geórgia [em 2008], na Crimeia [em 2014] e agora quer fazer no Donbass.
Concorda com a avaliação de que esse é o conflito mais desafiador para a Europa desde a Segunda Guerra? Sim. O conflito tirou a imagem de que a Europa não teria mais guerras nessa proporção. Há uma percepção muito clara em todos os países europeus de que, daqui para frente, poderá haver novos conflitos. Bósnia e Kosovo foram diferentes: em nenhum momento durante a guerra de Kosovo se pensou que ela poderia se espalhar para outros países, por exemplo.
Hoje há esse temor. A Alemanha aumentou seu orçamento da área de defesa, e está, pela primeira vez, vendendo armas para um país em conflito. A Finlândia está tomando uma ação [sobre ingressar na Otan]. Todos os países europeus estão reagindo em função de uma percepção, real ou imaginada, de que outros conflitos como esse possam surgir. A questão não está mais no Oriente Médio, não está só no terrorismo [como pensavam].
A Otan, logo que acabou a Guerra Fria, tentou justificar a sua existência olhando para outros lugares: Afeganistão, Líbia, Iraque. Agora, voltou a olhar para a Europa.
Fonte: Folha de São Paulo