Emenda de Lira banca obra em via que leva a fazendas dele em Alagoas
Recursos de emenda de relator indicada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), financiaram obra federal de pavimentação de uma via, em um vilarejo do interior de Alagoas, nas proximidades de fazendas do próprio deputado.
A obra de calçamento com paralelepípedos em São Sebastião (a 120 km de Maceió), custeada pela estatal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), foi inaugurada em junho com a presença do presidente da Câmara.
Questionado pela reportagem, o parlamentar disse que relacionar a obra federal com suas propriedades é uma “inverdade”. Procurada, a Codevasf afirma que segue o princípio da impessoalidade “em todas as suas ações”.
A parte remodelada da avenida, batizada de José Batista Neto, tem 1.800 metros. Ela é o principal acesso da BR-101 ao povoado Terra Nova e também leva a um conjunto de propriedades rurais usadas para pecuária pelo deputado.
Duas dessas propriedades são as fazendas Tapera e Paudarqueiro, tema de reportagem da Folha que mostrou que o deputado não as declarou à Justiça Eleitoral em 2018, apesar de ter assinado documento de compra de direitos de um grupo de herdeiros no início daquele ano.
Os imóveis do deputado estão às margens da BR-101. Mas, para chegar à porteira das terras, um dos caminhos passa pela avenida recém-inaugurada e também por um trecho de estrada de terra de cerca de 800 metros.
As fazendas Tapera e Paudarqueiro possuem juntas 110 hectares (o equivalente a 153 campos de futebol), e áreas vizinhas também são ocupadas por Lira.
O Terra Nova é o povoado mais próximo das terras, com comércio e mercado —fica a cerca de 10 km da área central do município. Outros bairros afastados de perfil parecido ainda não foram beneficiados.
O contrato da Codevasf em questão foi assinado em 2020, quando Lira ainda não era presidente da Câmara. Engloba obras de pavimentação para outras 27 cidades do interior alagoano, em um total de R$ 17,75 milhões. São Sebastião, de 34 mil habitantes, foi a mais contemplada nessa leva, com R$ 1,85 milhão enviado. O município é vizinho a Junqueiro, terra natal do pai de Lira, o ex-senador Benedito de Lira.
A Codevasf afirma que o trecho no distrito Terra Nova, especificamente, custou R$ 657 mil. A obra foi feita dentro da lógica dos “contratos guarda-chuvas” da estatal, criada para escoar de modo mais rápido verbas de emendas parlamentares.
Nesse modelo, um mesmo contrato abriga projetos de pavimentação em diferentes cidades, sem definir previamente os locais onde as obras serão feitas nem a prévia elaboração de um projeto básico. Os preços são orçados por metro quadrado, como se fosse um serviço de colocação de pisos em uma casa.
A Codevasf foi entregue ao centrão pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), em troca de apoio político, e mudou sua vocação histórica de promover projetos de irrigação no semiárido.
As emendas de relator, que financiam bilhões de reais em obras da estatal, são criticadas pela falta de transparência, já que não há indicação clara de quem foi o parlamentar que pediu a destinação de verbas. O modelo é questionado no Supremo Tribunal Federal.
No caso de São Sebastião, a Folha conseguiu rastrear a indicação de Lira por meio de número de contrato e de nota de empenho no Portal da Transparência. Documento da estatal de 2020 afirma que Lira indicou os recursos para pavimentação nas cidades alagoanas por meio de um ofício em julho daquele ano.
A inauguração do calçamento em São Sebastião, no último dia 24 de junho, teve discursos de exaltação e agradecimento a Lira, incluindo do prefeito Zé Pacheco (PP), em seu quinto mandato na prefeitura. O censo de 2010 apontava que a localidade de Terra Nova tinha à época cerca de 1.300 moradores.
Na inauguração, também foi entregue ao município um caminhão, adquirido com recursos da Codevasf.
Lira afirmou aos moradores para que aproveitassem a obra. “Graças a Deus, hoje, são quase dois quilômetros de pavimentação, com muita dificuldade, entregues aqui à comunidade da Terra Nova.”
Apesar da pompa da placa de inauguração, que cita até o presidente Bolsonaro, principal aliado político de Lira, a obra ainda estava incompleta quando a reportagem da Folha esteve no local, em julho. A via tinha materiais espalhados, um buraco no pavimento e monte de areia obstruindo a passagem. Nenhum operário trabalhava no local naquele momento.
Relatório da CGU (Controladoria-Geral da União) sobre o contrato “guarda-chuva” em Alagoas, finalizado no ano passado, encontrou problemas na execução das obras da estatal no estado custeadas com verbas dessa emenda indicada por Lira.
Ao analisarem detalhes sobre o andamento da pavimentação em outra cidade alagoana, os auditores consideraram que havia riscos de pagamentos indevidos de serviços e de sobrepreço nesse contrato. Questionaram, por exemplo, inconsistências nos dados apresentados pela construtora escolhida.
A Folha procurou a Codevasf e questionou de quem partiu a indicação para pavimentar o trecho do distrito Terra Nova. A estatal disse que a solicitação foi do município, em 2020, e que a pavimentação beneficia moradores da localidade.
Também afirmou que outras obras do tipo foram empreendidas em São Sebastião em anos anteriores e que segue o princípio da impessoalidade “em todas as suas ações”.
Sobre o relatório da CGU, a Codevasf disse que recomendações de órgãos de controle são observadas pela companhia “para contínuo aperfeiçoamento de procedimentos”.
No mais recente ranking nacional do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), São Sebastião ficou na posição de número 5.209 entre os 5.560 municípios brasileiros analisados.
A Folha procurou a prefeitura para comentar os critérios de escolha das obras de pavimentação, mas não obteve resposta. A reportagem enviou emails e deixou recados nos telefones do prefeito e de auxiliares, mas não conseguiu contato.
Procurado, Lira criticou a reportagem da Folha, em mensagem enviada por sua assessoria: “Darei a resposta solicitada, embora saiba que não servirá para que a verdade seja devidamente informada. Isso já ocorreu em matéria recente. Para não perder a pauta, se conta a inverdade, e lá no final da matéria se posiciona a informação verdadeira como se fosse resposta do ‘outro lado'”.
Sobre o caso em questão, Lira falou sobre outra obra de pavimentação no município, no povoado Bicas. Disse que a população desse bairro “merece um tratamento melhor de saúde, educação e também de acesso” e que a estrada não pavimentada está castigada pela chuva.
Novamente questionado sobre a pavimentação no distrito Terra Nova, ele não voltou a fazer comentários.
Lira tem defendido a regularidade das emendas de relator, que chegaram a ter a execução suspensa pelo STF em 2021. Ele diz que não se pode “criminalizar” esse tipo de verba e que os parlamentares têm mais conhecimento sobre as necessidades da população do interior do país.
“Eu que tenho 30 anos de mandato sei as alterações dessas emendas na vida das pessoas, em municípios pobres”, disse à Folha, em 2021.