Elon Musk deu um baile no Brasil e venceu – Ronaldo Lemos

Elon Musk jogou nos últimos dias uma casca de banana para os brasileiros. O Poder Judiciário, o Executivo, o Legislativo, a imprensa e a sociedade civil atravessaram a rua só para ir pisar e escorregar nela. Há uma regra fundamental da internet que diz: “Nunca brigue com um porco. Todos irão se sujar, mas o porco gosta”. Musk não só gostou da brincadeira, como graças a ela conseguiu politicamente tudo o que queria em prazo recorde.

Nossas instituições deveriam ter ignorado solenemente as ameaças de Musk no X. Se ele cruzasse a linha e de fato descumprisse ordens judiciais (o que não ocorreu), as consequências deveriam ser legais, dadas nos autos do processo. Ao respondermos a tuítes com ameaças hipotéticas, por meio de centenas de artigos na imprensa, declarações de autoridades, bravatas e movimentações processuais espetaculares, o Brasil transferiu o debate do STF (Supremo Tribunal Federal) para o tribunal da internet. E nesse tribunal Musk é rei.

Vejamos os estragos. Em quatro dias, com seus tuítes, ele conseguiu a demissão do relator do projeto de lei das Fake News, deputado Orlando Silva, de forma sumária. Um movimento raro no Congresso, ainda mais de forma tão abrupta. Musk também conseguiu que o presidente da Câmara trabalhasse para ele, criando uma comissão especial para escrever uma nova lei para internet no país em 40 dias (o que poderia dar errado com tanta pressa?).

Também colocou o Supremo para trabalhar para ele. Com um punhado de tuítes fez o STF pautar ações de constitucionalidade sobre a regulação da internet que estavam paradas há meses. Conseguiu também que o Supremo incluísse Musk pessoalmente como investigado no inquérito dos ataques à democracia. As luzes da ribalta brilharam forte sobre ele, do jeito que ele gosta. Por fim, conseguiu eletrizar toda uma corrente política que andava cabisbaixa nos últimos meses. Jogou como um mestre, como um “boss” de videogame.

Isso indica que a imprensa, a sociedade civil e as instituições do país não aprenderam nada nos últimos oito anos. Esse protocolo de ação política já aconteceu tantas vezes. Mesmo assim, quando Pedro gritou lobo pela milésima vez, saímos todos correndo de novo para ver se era verdade. Deu no que deu. Nos últimos quatro dias, Elon Musk reinou no país.

Especificamente com relação ao Judiciário, Musk foi mestre. No seu grande jogo, ele está construindo o caminho para a figura mais temida no campo do direito: a desconfirmação. O poder, para ser exercido, precisa manter sempre a aparência de eficácia. Quando ele passa a ser ignorado, termina por se tornar patético, deixando de ser poder.

Musk está construindo um aparato para conseguir ignorar ordens dos Estados nacionais. Esse aparato tem ao menos três elementos. O incentivo ao uso de VPNs, sistema que permite furar a capacidade da Anatel e das operadoras de bloquear sites e serviços no Brasil. Se um número significativo de pessoas passar a usar VPNs, o Judiciário perde a capacidade de fazer bloqueios. Será então tentado a bloquear as próprias VPNs, um passo que nenhum país democrático deveria dar.

Outro tijolo no muro da desconfirmação que Musk está construindo é a ameaça de encerrar o escritório do X (Twitter) do Brasil, colocando-o fora do alcance da jurisdição brasileira. Sem presença no país, seria preciso recorrer a tratados internacionais e à cooperação judicial de outros países, o que é não só demorado como improvável de ter qualquer eficácia.

Por fim, a grande cartada do poker da desconfirmação de Musk chama-se Starlink. O empresário é dono hoje do maior provedor de internet por satélite de baixa órbita do planeta. Basta viajar pelo interior do Brasil, incluindo a região amazônica, para ver como o Starlink já tem raízes profundas no Brasil. Sua próxima evolução tecnológica será se conectar diretamente aos celulares, sem precisar de um aparelho especial (a Anatel já está conduzindo testes sobre isso no país).

Como o Starlink é um provedor controlado por Musk, é possível imaginar que irá se recusar a cumprir ordens judiciais que seu dono ache descabidas, ainda mais com relação ao X, sua plataforma privada. Nesse caso, o Judiciário ficará tentado a querer bloquear o próprio Starlink. Outra linha que não deve ser cruzada e cujos efeitos colaterais seriam intoleráveis, dada a dependência e popularidade do serviço no país.

Celso Lafer diz que o exercício do direito é o exercício da prudência. O Judiciário brasileiro está lidando com um tipo novo de manipulação. Não deveria deixar a prudência de lado. Ao agir com o fígado, transfere poder para o tribunal da internet e ajuda na agenda da sua própria desconfirmação.

Afinal, Musk é muito mais influente sobre as big techs do que gostamos de perceber. Ele é o boiadeiro que atira à água os primeiros bois de piranha. Demitiu milhares de pessoas do Twitter. Deu certo. Todas as big techs fizeram o mesmo. Reduziu investimentos em segurança na plataforma. Deu certo. Todas as big techs fizeram o mesmo. Está agora construindo a teia para começar a ignorar ordens judiciais (e leis) que acha que não são alinhadas à sua ideia particular de liberdade de expressão e aos interesses do seu negócio. Se der certo, outros irão atrás.

O Brasil pode ser mais inteligente e estratégico do que foi nos últimos quatro dias. Está na hora de enxergar as coisas como elas são. A começar pelas cascas de banana.

Ronaldo Lemos é advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

 

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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