É preciso desinflar narcisismo de grupo que bloqueou capacidade de dialogar no Brasil, diz escritor

A pacificação social após a disputa eleitoral mais acirrada desde a redemocratização será uma das missões de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que derrotou o presidente Jair Bolsonaro (PL) por 50,9% a 49,1% e alcançou um terceiro mandato.

E, para Francisco Bosco, Lula é a pessoa mais indicada para essa tarefa. “Lula é um conciliador. Sempre foi e reafirmou isso no seu discurso”, afirma o autor do livro “O Diálogo Possível – Por Uma Reconstrução do Debate Público Brasileiro”.

Em entrevista à Folha, Bosco afirma que a vitória de Lula não pode ser subestimada, assim como não se pode esquecer que ele terá uma margem de manobra muito estreita.

O que Lula precisa precisa fazer para pacificar o país, que se mostrou muito dividido nesta campanha eleitoral? O Norberto Bobbio, cientista político italiano, dizia que o bom Estado é uma pluricracia. Ou seja, é uma democracia em que o poder é repartido, de forma que nenhum grupo social se sinta humilhado, oprimido, desfavorecido, ressentido.

O Lula, consideradas as suas ideias políticas, é a pessoa mais indicada para encarar a tarefa de pacificação da divisão social brasileira. Lula é um conciliador. Sempre foi e reafirmou isso no seu discurso.

O problema é que essa divisão transcende em muito a figura do Lula. E, ao mesmo tempo, está ligada a uma dimensão histórica da figura do Lula: o processo do chamado petrolão, que criou para uma grande parte da sociedade brasileira uma imagem de um Lula corrupto.

Essa imagem é parte importante da divisão social brasileira. Com Lula voltando ao poder, esse fator continuará a alimentar a divisão social, e o comportamento dele não tem como alterar isso.

Agora, no que depender do comportamento político do Lula no governo, eu não tenho dúvida de que será no sentido de realizar essa pluricracia.

Em seu livro “O Diálogo Possível”, o sr. afirma que a polarização atual tem sua origem nas disputas entre PT e PSDB ao longo de mais de duas décadas. Poderia explicar? Durante a redemocratização, PT e PSDB se entregaram a um jogo perigoso para a democracia por objetivos estritamente eleitorais, que é o jogo de caricatura recíproca.

O PT representava o PSDB para a sociedade brasileira como um partido neoliberal e que teria deixado a famigerada herança maldita. São dois termos falsos.

O PSDB também fez uma caricatura do PT como um partido mais à esquerda do que efetivamente era, questionou a legitimidade da eleição de 2014, teve atuação de protagonista no impeachment, a meu ver ilegítimo, da presidente Dilma Rousseff [PT].

Esse conjunto de comportamentos de ambas as partes remete ao que os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamam de autocontenção ou comedimento. É a obediência à consciência de que ganhos eleitorais imediatos em consequência de golpes baixos corroem a credibilidade das instituições a longo prazo e deveriam ser evitados.

Ambos os partidos não hesitaram em se entregar a esse jogo e, sem que se dessem conta, um estava desgastando a credibilidade do outro. Quando a sociedade brasileira chegou a uma espécie de estado de anomia após os acontecimentos de 2013, esses partidos foram vistos como forças inviáveis, e isso preparou terreno para a emergência de um populismo de extrema direita.

O debate na internet também parece muito radicalizado. As redes sociais têm um papel nessa dinâmica? Sim. A arquitetura das redes sociais leva à formação dos grupos, ou das famigeradas bolhas. Quando você entra numa lógica de grupo por um laço identificatório, seja religioso, seja futebolístico, seja político-partidário, você é apoiado, você é reconhecido pelo seu grupo. Isso, em primeiro lugar, te dá um prazer narcísico do acolhimento, do pertencimento.

A tendência dessas dinâmicas é recompensar a radicalidade e punir a dúvida, a crítica. Porque aquele que produz a repetição intensificada confirma o valor do grupo; quem critica premissas do grupo tende, no limite, a ser expulso.

Para que o debate público funcione, cada sujeito tem que ter uma atitude de boa-fé. Tem que ter abertura para permitir que evidências, argumentos, estatísticas e dados empíricos possam convencê-lo.

A lógica de grupo transforma essa atitude. O sujeito passa a ter um compromisso não com a interpretação mais precisa da realidade, mas com o próprio grupo. Se a melhor interpretação da realidade se chocar com os interesses do grupo, tanto pior para a realidade.

Essa talvez seja a razão principal para que nós tenhamos chegado a um estado de divisão social muito profundo. Quando as pessoas estão completamente submetidas a lógicas de grupo, elas ativam essa retroalimentação permanente da divisão, porque a dinâmica de radicalização do próprio grupo produz ressentimento no grupo adversário, que por sua vez leva a caricaturar o outro grupo –e você entra nesse círculo vicioso.

Como escapar dessa lógica? Em primeiro lugar, considero que não é exagero retórico tratar a divisão social brasileira como uma guerra civil fria. Um dos livros fundamentais de 2018 foi “Como as Democracias Morrem”, de Levitsky e Ziblatt. Agora, o livro que tem cumprido o mesmo papel é “Como as Guerras Civis Começam”, da Barbara Walter.

Um país entra em risco de ter uma guerra civil quando tem uma ou mais facções. O que é uma facção? É um grupo social com determinadas características que, em boa parte, são aplicáveis ao que já poderíamos chamar de facção bolsonarista: coesão, hiperengajamento, intimidação –incluindo violência física real—, disputa pelo poder institucional e tentativa de armar a sociedade.

A minha hipótese é que, embora o bolsonarismo seja um amálgama heterogêneo, o traço fundamental que o reúne é o que eu chamaria de tradicionalismo. Quase todos os subgrupos que formam o bolsonarismo são tradicionalistas. Eles se sentem profundamente ameaçados pela perspectiva moderna ou progressista.

Então a gente já não está mais falando de um processo de perda do diálogo. Isso já acabou faz tempo. Como é que você faz para resolver esse problema? É uma tarefa coletiva, e a gente deve repudiar qualquer perspectiva de resolução que vá na linha de uma ruptura, tanto pela esquerda quanto pela direita. Eu só acredito no caminho de dissolução da divisão social.

Isso passa por um novo comportamento no espaço público. O Brasil saiu de um estado de participação social apático pré-2013 para um estado de hiperengajamento, sem passar por uma mediação civilizadora. A gente tem que ser capaz de qualificar o espaço público brasileiro e desinflar esse narcisismo de grupo que faz com que as pessoas tenham perdido a sua capacidade de dialogar.

Segundo o escritor, o petista terá o desafio de conduzir o país também no caminho do fortalecimento institucional e do desenvolvimento social.

Ele afirma que, para superar a divisão, será necessária uma tarefa coletiva de reorganização do debate público, sobretudo nas redes sociais, onde, diz ele, a lógica de grupo reforça a polarização.

Em seu livro, o sr. mostra como o debate se desenrola em torno de caricaturas exageradas, com palavras como comunismo, fascismo, liberalismo, socialismo etc. sendo usadas em polarizações simplificadas. Se fosse para escolher uma dessas caricaturas para desfazer em primeiro lugar, qual seria? Neoliberal versus comunista. Essa é a caricatura mais tosca de todas. A esquerda hegemônica tende a amalgamar todo o espectro da direita por meio desse significante “neoliberal”. E a direita hegemônica, quase como um programa de humor, tende a reduzir toda a esquerda ao espectro do comunismo. Isso é uma piada.

O par conceitual mais abusado é esse. Mas o mais importante é conservador versus progressista. Esse é o eixo que estrutura a experiência social e institucional brasileira neste momento. Então esse é o que deveria merecer a maior atenção; e esse é também aquele cujas respostas são as mais difíceis.

Por quê? Houve uma radicalização do campo conservador. O campo conservador intensificou muito a sua perspectiva, se tornou mais fechado e mais reativo à agenda liberal progressista. Isso aconteceu por razões que dizem respeito ao próprio campo conservador –como a emergência dos evangélicos nos espaços institucionais—, mas também porque estava acontecendo uma transformação de sentido contrário no campo da esquerda.

Na última década e meia, a agenda progressista se radicalizou enormemente, a ponto de a esquerda hoje ser hegemonicamente progressista.

Em uma hipótese a ser estudada com mais profundidade, o que me parece que tem acontecido é que o progressismo saiu de campos não compulsórios, de campos voluntários, e passou para campos comuns. Para dar apenas um exemplo, a arte é um campo voluntário por excelência: faz quem quer, frui quem quer. Mas a língua é uma obra comum, feita com o tempo. Outros campos que dizem respeito à experiência comum são o do gênero e, mais recentemente, do sexo.

E eu não sei o que fazer com esse nó. Porque, para a minha concepção teórica, só a perspectiva progressista é moralmente aceitável. Para a tradição liberal civil também, porque a tradição liberal civil vai dizer que a liberdade de todo indivíduo só termina quando ela viola diretamente a liberdade de outrem. Ora, uma pessoa trans não viola a liberdade de outrem, para ficar em um exemplo.

Do ponto de vista das políticas públicas, o sr. propõe uma nova concepção de centro. Como seria? Existem duas imagens e práticas do centro na tradição brasileira. Uma é o centro fisiológico, corporativista e patrimonialista que hoje a gente conhece como centrão. A outra é o centro ideológico, programático: centro-esquerda, centro-direita e centro.

Esse centro programático tem a virtude de governar tendo como critério o interesse comum, republicano. Para essa ideia de centro, você deve criar políticas públicas que corrijam desequilíbrios, mas elas não podem ser muito radicais nem à esquerda nem à direita.

Só que o Brasil tem um passivo histórico de desequilíbrios em todas as suas dimensões: racial, de gênero, socioeconômica, regional. São desequilíbrios tão grandes que exigem políticas públicas condizentes com essa radicalidade.

Então eu defendo uma ideia de centro que não seja centro como ponto de partida, mas como ponto de chegada. Um centro capaz de acolher políticas públicas radicais, sejam de esquerda, sejam de direita, dependendo da natureza do problema.

Por exemplo, a direita tem uma contribuição enorme a dar para o aumento da produtividade. De outro lado, em relação à desigualdade brasileira, quem tem a maior contribuição a dar é a esquerda.

Lula vai ser capaz de levar isso adiante, considerando a conjuntura social e política? Nós não podemos, de modo algum, subestimar a importância desse resultado, cujo significado é ter tirado o país do abismo. Mas não podemos ser ingênuos quanto à margem de manobra que o governo Lula terá.

Lula vai pegar um contexto global instável, envolvendo uma guerra na Europa, que pressiona a situação inflacionária no mundo inteiro. Vai pegar um Congresso com perfil conservador sem precedentes na redemocratização.

Vai pegar um problema sério de redução da parte discricionária do orçamento, por conta do orçamento secreto, que ele vai ter que se esforçar para reverter. E, finalmente, vai pegar um país socialmente muito dividido.

Então considero que esse novo governo Lula é sobretudo um governo cujo sentido consiste em recolocar o Brasil no trilho certo, do fortalecimento institucional, do desenvolvimento social e da pacificação dessa divisão do país.


RAIO-X | FRANCISCO BOSCO, 46

Doutor em teoria literária pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ensaísta, foi presidente da Funarte (Fundação Nacional de Artes) de 2015 até o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Autor, entre outros livros, de “O Diálogo Possível – Por Uma Reconstrução do Debate Público Brasileiro” (Todavia, 2022).

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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