E o morro foi pro brejo – José Jorge Andrade Damasceno

Alagoinhas é uma região de tabuleiro, com grande área arenosa, e algumas formações argilosas, com pequenas elevações de terra. Era também caracterizada por um grande número de pântanos, riachos e rios, formando uma extensa área de charcos, sobretudo nos invernos de chuvas torrenciais.

 Lá pelos finais dos anos 1950, foi loteada uma extensão de terra com aproximadamente 1600 metros quadrados, de propriedade do senhor Álvaro Dantas, localizada entre as margens do rio Aramari e o Alto do Santo Antônio, mais conhecido como Sobocó.

 Como divisa entre uma área e outra, se interpunha uma barreira natural, um grande morro, com vegetação rasteira, formada por quaranas, velames, rabugens, malvas-brancas,carquejas, entre outras, além de algumas grandes árvores, como coqueiros, mangueiras, jaqueiras, cajueiros, etc. Bem no cimo daquele morro, havia uma casa grande, com uma sólida  construção de pedras, que provavelmente tivera servido de residência do proprietário da fazenda que até então ali existira.

 Chegam os anos 1960 e, com eles, os primeiros compradores daqueles lotes, que, ato contínuo, iam construindo suas modestas casas de taipa; alguns, iam se estabelecendo como pequenos criadores de gado leiteiro, porcos e carneiros, aproveitando a proximidade e abundância de águas e pastagem, além da grande disponibilidade e variedade de madeiras para uma gama diversa de utilidades.

 A topografia do lugar e a falta de recursos financeiros suficientes e de meios técnicos adequados faziam com que aquelas casas fossem erguidas de um único lado da nova rua, fazendo frente para o morro, que ao mesmo tempo fornecia o barro para a construção dos taipados, bem como para a produção de adobes.

 Aquela era também a estrada por onde passava a boiada vinda de Boa União, para ser abatida no matadouro público municipal. Com a constante passagem de pessoas e animais, ia assim se formando o caminho, mais tarde ampliado e transformado em rua, que, se iniciava no chamado “caminho do rio” e, se estendia até as margens da estrada de ferro, que atravessada, chegava-se a um outro caminho que dava acesso ao citado matadouro

Entre os momentos mais marcantes na vida dos moradores da rua aberta em frente ao morro, são dois os que se destacam, por conta das conseqüências e mudanças produzidas no dia a dia daquela gente, de viver simples e sobrevivência difícil. Vão longe os anos, mas ficou viva na memória do cronista a lembrança, de uma grande borrasca que se abateu na cidade, aí por volta de 1968, pouco mais ou menos, quando fortes ventos e chuvas torrenciais provocaram o escorregamento de grande volume de barro, pedra e lama, ao ponto de quase soterrar as modestas casas de taipa, erguidas ali em frente, há poucos metros do grande barranco, socavado pela constante retirada de barro para aquelas construções toscas e frágeis.

Até mesmo a velha casa da fazenda, imponente e soberba, que reinava absoluta no cume daquele morro, sofreu grandes e irreversíveis avarias, até cair ou ser derrubada, não se sabe ao certo, algum tempo depois, e ter seus escombros aproveitados pelos moradores para reforçar e alicerçar suas habitações, quando as puderam reformar.

 Grandes árvores foram arrancadas e arrastadas pelo morro abaixo; outras envergaram definitivamente, como foi o caso de um imponente cajueiro que, literalmente, foi posto de joelhos pela força dos ventos, ficando assim, até ser cortado e transformado em madeira para as fogueiras juninas.

 Os invernos torrenciais que se sucederam, as chuvas de verão, tão comuns na região, o constante retirar de barro pela população, contribuíram para promover um sério comprometimento do morro, colocando em risco a integridade daqueles moradores. Como ficou claro alguns poucos anos depois, durante uma temporada de inverno bastante chuvoso, quando pequenos, mas constantes deslizamentos de terra, ocorreram, trazendo para baixo grande quantidade de lama e pedra, assustando tanto as pessoas que ali residiam, quanto as que passavam pelo local.

Talvez por este motivo, por volta do ano de 1974, pouco mais ou menos, ocorreu o segundo momento marcante na memória dos moradores da rua Jardim São Francisco.

 Em algum alvorecer da infância ou adolescência dos que hoje contem em torno de cinquenta anos, o dia não parecia que seria diferente dos já transcorridos até ali. O sol nasceu como sempre, no intervalo entre as cinco e as seis da manhã. O cronista, ao acordar e encher os pulmões com aquele ar fresco e aprazível, os mesmos aromas matinais, aguçavam-lhe o olfato com um perfume deliciosamente indescritível, que só Alagoinhas tem.

As aves já se erguiam dos seus ninhos; estudantes, trabalhadores, animais de carga e tração, se preparavam ou iniciavam seus labores, de acordo com aquilo que lhes era habitual, conforme fosse o seu cotidiano.

 A meninada que estudava no vespertino não perderia a chance de brincar por toda a manhã: Uns, preparavam seus badogues para as pequenas caçadas e derrubadas de frutas; outros, se agrupavam para os jogos de bola de gude ou de botão; ainda outros, traziam seus carrinhos de madeira para o dirigir livremente na rua, imponentes, como se eles fossem carros de verdade!

 Mas, havia um quarto grupo de garotos, para os quais, aquele dia reservava grande surpresa. Trata-se daquele que tinha o morro como cenário de suas brincadeiras, como palco onde exibiam suas habilidades como empinadores de arraias, onde disputavam os “corta-linhas; lugar privilegiado de observação, de onde se podia assistir os estouros de boiadas, muito comuns ali, que fazia a diversão cinematográfica da garotada; lugar de onde se podia ver, para além dos quintais das casas situadas metros abaixo; lugar de onde se podia descortinar a bela paisagem que se apresentava exuberante a quem a quisesse ou pudesse admirar.

Também aquele morro era o lugar por excelência das grandes e arriscadas travessuras sobre as árvores que não sucumbiram aos açoites da tempestade de alguns anos antes.

 Mas então, o que estava por vir? Naquela manhã se descortinava um espetáculo diferente, diante dos moradores, que estupefatos, viam chegar algumas máquinas e homens da prefeitura, para fazer ali, ainda não sabiam o que. O barulho e o peso dos equipamentos faziam as frágeis casas estremecer, como se estivessem sendo sacudidas por terremotos, o que acabou por provocar rachaduras em muitas delas, deixando assustados seus proprietários.

 Afinal, o que fariam ali, aquelas máquinas? Abririam mais a rua? Fariam alguma escavação para, quem sabe, passar a tubulação da “Saé”, para permitir aos ali residentes, desfrutar do abastecimento de água encanada? Afinal, o local de onde se fazia a captação, tratamento e distribuição, não distava mais de trezentos metros dali! Ah, quantas esperanças, especulações e expectativas estavam nas mentes e desejos dos moradores daquele lugar, tão distante do centro da cidade e esquecido pelos gestores públicos!

 A resposta a estas perguntas não se fez esperar. Não era para fazer o alargamento da rua; nem para trazer melhoria, propiciando o recebimento de água encanada; nem mesmo, para fazer um nivelamento do logradouro, dando uma uniformidade no terreno cheio de altos e baixos, que aqueles equipamentos estavam ali se posicionando. Logo percebeu-se que aquelas máquinas estavam ali, para colocar aquele morro sobre as caçambas que também já chegavam ao local, a fim de o levar para o brejo.

Sim, o morro iria para o brejo situado na frente da estação ferroviária, entre o 2 de julho e as margens do rio Catu, onde seria despejado todo aquele volume de barro e cascalho, com o fim de aterrar o local que, mais tarde, viria a ser a Central de Abastecimento e a avenida Lourival Batista.

Ah, mas o morro não foi pro brejo sozinho e vazio. Levou consigo reminiscências dos que lá subiram para brincar, para correr; para escalar as árvores e nelas fazer peripécias e piruetas, as mais audaciosas e perigosas; dos que lá se engarupitaram para assistir os espetáculos que, bois embravecidos e vaqueiros encolerizados, protagonizaram inúmeras vezes.

Também levou consigo as lembranças de quem frequentou a velha casa que ruíra, quando nela ainda havia morador, para lá ouvir, quase sempre no final da tarde e início da noite, em  uma radiola Philips portátil, discos de Ludrugero e Otrope, Gerson Filho, Barnabé, Osvaldo Nunes, Jacinto (o donzelo); as músicas de dor de cotovelo de Waldique Soriano, do Ciriema, ou as da jovem guarda de Wanderley Cardoso, Wanderléia, Roberto e Erasmo Carlos… os baiões de Luís Gonzaga, Carmélia Alves, Marinês e sua gente,Trio Nordestino! E tantos, e quantos!

Sim, tantas histórias de vida, quantas memórias vividas naquele morro, que literalmente foi “pro brejo”.

*Doutor em História Social e professor da UNEB

 

Foto: Internet – Construção da praça J.J.Seabra 

 

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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