De concurso de miss a maternidade, cadeirantes contam como resgataram autoestima
A vida da artista plástica Kallyna Sampaio mudou completamente quando, aos 22 anos, sofreu um acidente de carro. Há dois anos, o capotamento e a fratura da cervical deixaram a jovem tetraplégica, seu amigo que dirigia o veículo morreu na hora. O trágico acidente não impediu Kallyna de seguir em frente.
No início deste mês, a jovem foi a vencedora do concurso de beleza Miss Cadeirante, etapa Distrito Federal. Além de vencer a disputa, mostrou a importância da autoestima.
Cercada por estigmas e preconceitos, a vida da mulher cadeirante pode ser exemplo de força e superação. Em entrevista à Agência Brasil, três mulheres contam como aprenderam a lidar com sua nova condição e a valorizar as pequenas conquistas do dia a dia.
“O concurso caiu como uma luva, me deu objetivos de vida que eu não tinha antes. Agora, vou fazer um curso de moda, quero ser referência de estilo”, conta. A jovem sonha em concluir uma graduação na área e abrir a própria grife de roupas.
Além da moda, Kallyna compartilha suas experiências diárias em um canal no Youtube. Na plataforma, a jovem detalha exercícios e terapias que as ajudam no resgate de seus movimentos e também na sua feminilidade. Nos vídeos, dá dicas de maquiagens, superação e autoestima para seus seguidores.
“Por incrível que pareça, as pessoas se tornam muito melhor depois de sofrerem um acidente. É um divisor de águas na vida. Quando estou triste, me dou o direito de passar um dia triste, apenas um dia. Eu choro, enxugo as lágrimas e no outro dia já levanto bem. Penso que tenho todos os outros dias para ser feliz. Mas para isso, autoestima é fundamental. Eu valorizo a minha vida e inclusive sou até mais social do que antes”, descreve Kallyna.
A jovem foi escolhida entre quinze concorrentes como miss por um time de 13 jurados entre médicos, psicólogos e fisioterapeutas. Em novembro, representará o Distrito Federal na etapa nacional do concurso. “A limitação do movimento não pode ser a limitação da vida”.
Mãe Cadeirante
A rotina das mães brasileiras não costuma ser uma tarefa simples para administrar: escola, creche, alimentação e diversão. Jovelina Oliveira, de 29 anos, paraplégica há sete anos, enfrenta os mesmos desafios ao criar seus dois filhos e ainda dribla, com muita dedicação, a limitação dos seus movimentos. “Ao descobrir que estava paraplégica, achei que tinha morrido e não tinha sido enterrada”, conta.
Jovelina teve o segundo filho, quando já usava cadeira de rodas, e hoje, divorciada, administra sozinha a rotina deles. “Tive que reaprender tudo. Foram alguns anos e muita fé, mas redescobri a sexualidade, a mulher que estava dentro de mim e eu mesma estava matando. Uma mulher na cadeira de rodas pode ser bonita, desde que tenha amor-próprio. Quando eu entendi isso, passei por uma transição da mulher que era andante para a cadeirante. Descobri que enquanto há vida, há esperança.”, diz. A jovem ficou paraplégica ao ser atingida por cinco tiros após discussão com uma vizinha.
“Quando meu segundo filho nasceu, eu já era cadeirante. A vida precisa ter sentido. Não posso parar, tenho muitos planos. Ainda quero fazer faculdade e escrever um livro contando a minha história, falar dos tabus a respeito da sexualidade da cadeirante. A gente precisa saber que é possível superar as dificuldades”, explica.
Empatia
Há seis anos, Stefanny Fernandes Freitas, de 25 anos, sofreu um acidente de trânsito e também ficou paraplégica. De carona na moto de um amigo, foi atingida por outro carro quando o sinal fechou. Ao todo, foram 30 dias de internação entre a vida e a morte.
Durante o período de tratamento, foi descoberto um tumor raro, no canal entre umbigo e a bexiga. Como era inicial e assintomático, Stefanny provavelmente não teria descoberto o câncer caso não tivesse sofrido o acidente. “Pela gravidade do tumor, eu poderia morrer em dois anos, caso não tivesse descoberto naquele momento. Só isso já me ensinou a ver tudo que passei de uma outra forma”, conta.
Terapia
O resgate da autoestima e a redescoberta do corpo da mulher passam por um processo, que muitas vezes depende da ajuda profissional de um psicólogo. Segundo a doutora em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade de Barcelona e membro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Daniela Zanini, o tratamento é fundamental no auxílio da restituição da autoestima, na redescoberta da sexualidade, assim como em atividades como trabalho, relações com filhos e a reinserção social.
“O processo de adaptação é muito significativo e dependendo de como ela lida, terá um maior nível de bem-estar. Caso contrário, a mulher pode desenvolver transtornos como quadros depressivos, ansiedade ou mesmo fobia social”, explica a psicóloga.
Segundo Daniela Zanini, o protocolo de tratamento inclui um “processo de luto”, em que a mulher compreende a perda de mobilidade e a valorização da vida. “Todos esses processos com perdas significativa, a gente trabalha o processo de luto, que não e só quando a pessoa morre. É refente a processos simbólicos de encerrar um determinado processo da vida e iniciar um outro, que implica, inclusive, novas formas de adaptações ao mundo”, afirma.
“O primeiro momento é o luto, a perda da mobilidade desse membro, da perda de alguns aspectos da independência funcional. Mas, posteriormente, é importante trabalhar os recursos que essa pessoa dispõe para adaptar. O que acontece algumas vezes é que a gente se acostuma tanto a um modelo de vivência, que não consegue pensar em outras formas”, aponta. “É importante focar em aspectos positivos, não naquilo que perdeu. Mas no que ela ainda tem e como, a partir dos recursos que ainda tem preservado, pode se adaptar a nova condição de vida. A partir de uma adversidade, é comum se descobrir competências, habilidades, pessoas significativas na vida, e esse acaba sendo um processo de aprendizagem”, completa.
A psicóloga explica ainda que a sexualidade tende a ser recuperada quando a mulher compreende o aspecto de forma mais ampla. “A sexualidade é muito mais que o ato sexual em si, e nesse sentido que pode até ter ficado comprometido aspectos específicos, mas ela ainda tem uma gama de outras questões que pode acionar para exercer sua sexualidade. Uso da criatividade, intimidade, o que pode ser um caminho para novas descobertas e até mais intimidade com o parceiro”, avalia.
Fonte: Agência Brasil