Congresso discute projeto que permite denúncia de infanticídio indígena

O índio Edson Bakairi, 44, nunca teve vida fácil. Em 1971, horas após nascer numa aldeia em Mato Grosso do Sul, a mãe dele tentou enforcá-lo com o próprio cordão umbilical. Sem forças, desistiu, mas deixou o bebê na mata, abandonado para morrer. Foi salvo por suas irmãs.

A mulher tinha receio do pai: havia uma dúvida sobre a paternidade da criança e, temendo uma represália do marido, tentou matá-lo.

“Minhas irmãs receberam ordem da minha mãe para me enterrar”, diz Bakairi. Mas elas tiveram compaixão.

Líder indígena da etnia que carrega no sobrenome, Bakairi é um dos defensores da chamada Lei Muwaji, que tramita no Congresso desde 2007 e foi aprovada pela Câmara no final de agosto.

Transformada em substitutivo que altera o Estatuto do Índio, a medida prevê que qualquer entidade, incluindo órgãos públicos e ONGs, ou até cidadãos comuns, denunciem práticas indígenas que atentem contra a vida, a saúde e integridade, sob pena de omissão de socorro.

Em outras palavras, a lei obriga a denúncia de qualquer prática indígena tida como violenta ou abusiva, como infanticídio, homicídio, abuso sexual ou maus-tratos. Gestantes poderão ser retiradas das aldeias, com anuência, caso se verifique que a criança corre risco de morte.

O texto segue ao Senado, não sem antes enfrentar polêmica discussão que já se arrasta há oito anos. A medida divide indigenistas, antropólogos e políticos, que temem que dê margem para desrespeito a práticas tradicionais e culturais dos cerca de 800 mil índios que vivem no Brasil.

“O infanticídio faz parte de uma das práticas tradicionais de alguns indígenas. Mas, assim como a mutilação genital feminina em alguns países da África, deve ser combatido por meio do diálogo intercultural. A cultura não é estática”, diz Simone Melo, da ONG Atini, que defende a lei.

O Brasil carece de fontes e dados atualizados de práticas tradicionais. Segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), que condena a nova lei, não há registros de práticas contrárias aos direitos humanos desde a década de 1980. Há, porém, ao menos um caso recente, em 2012, em Caracaraí (RR) –37 bebês ianomâmi foram mortos.

Bebês com irmão gêmeo, problema de saúde, físico ou mental, frutos de adultérios, brancos, filhos de mãe solteira etc. podem ser mortos.

Órgãos defensores da lei afirmam que mais de uma dezena de etnias praticam o infanticídio –o dado não foi confirmado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, que diz ser impossível registrar a estatística justamente pela dificuldade de acesso.

“O infanticídio é crime, e todos, incluindo indígenas, estão submetidos à lei brasileira. Há fatos isolados, da mesma forma que há abandono infantil na sociedade brasileira”, diz Saulo Feitosa, assessor do Cimi. “Há uma questão fundamentalista e religiosa por trás desta lei.”

‘TRADIÇÃO MILENAR’

A Funai, em nota, critica a lei e diz que ela afeta tradições milenares. A Associação Brasileira de Antropologia também a condena em um manifesto de repúdio. “A ‘casa legisladora’ deve trabalhar para por fim às mortes impunes de lideranças indígenas por todo o país, genocídio silencioso e insidioso”, diz trecho.

Políticos também estão divididos. “A diversidade cultural e as tradições indígenas não podem se sobrepor aos direitos humanos”, diz o relator do substitutivo, deputado Marcos Rogério (PDT-RO).

“O projeto aprovado não atinge o objetivo de superar a eliminação de crianças, prática cada vez mais rara em cada vez mais ínfimos grupos tribais”, afirma o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ).

Fonte: Folha de São Paulo

Maurílio Fontes

Proprietário, jornalista, diretor e responsável pelo Portal Alagoinhas Hoje

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