Civis e militares agiam em sintonia fina no Dops
Um recém-descoberto conjunto de seis livros com o registro de quem entrava e saía da ala reservada à diretoria no antigo edifício do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (Dops), no centro de São Paulo, comprova a estreita relação que existia entre forças militares e civis nas ações de repressão política, no período mais duro da ditadura, no início da década de 1970. Os documentos também expõem o intenso fluxo de representantes da sociedade civil pelo prédio que foi um dos principais centros de perseguição de dissidentes; e a forma como a rede de espionagem do regime autoritário se estendia por empresas estatais, sindicatos e universidades.
O acesso à diretoria do Dops ocorria por um portão na lateral esquerda do edifício, no Largo General Osório, bairro da Luz. A passagem de funcionários e visitantes era sempre registrada pelo funcionário de plantão num livro grosso, com folhas pautadas e numeradas – o livro de portaria. Anotava-se o nome, a organização à qual pertencia, horário de entrada de saída e, às vezes, com quem ia falar.
Por meio desses livros, que estavam esquecidos no acervo do antigo Dops, hoje recolhido ao Arquivo Público do Estado, é possível saber que o capitão Ênio Pimentel da Silveira, do Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, esteve 41 vezes no Dops entre março e outubro de 1971. Frequentemente chegava por volta das 19 horas.
Acusado por ex-presos políticos de se apresentar em sessões de tortura sob o codinome de Doutor Ney, o capitão Ênio era o homem da linha de frente do DOI. Cabia a ele a execução das diretrizes estabelecidas pelo comandante do destacamento, major Carlos Alberto Brilhante Ustra – que também deixou registro de suas passagens pelo Dops, mas com menor frequência.
O capitão costumava se encontrar no Dops com o seu equivalente naquela instituição, delegado Sérgio Paranhos Fleury – o agente que levou para a repressão política os métodos usados contra criminosos comuns. “Prender antes de investigar, torturar, pendurar no pau de arara, dar choques, práticas comuns nas delegacias, foram levadas por Fleury e outros policiais para o enfrentamento da subversão”, disse o jornalista Percival de Souza, autor de Autópsia do Medo, alentada biografia do delegado.
Os militares, de sargento a general, iam muitas vezes ao Dops para cumprir formalidades, uma vez que cabia aos policiais dar forma aos inquéritos que iam parar na Justiça Militar. Eles se apresentavam com o nome real, arma e patente.
Com esses dados é possível saber que o capitão Ênio já havia sido promovido a major em 1976. Nem todas as pessoas, porém, se identificavam adequadamente. O Capitão Ubirajara que aparece nos livros, por exemplo, não existe. Sabe-se agora que esse era o codinome usado pelo delegado Aparecido Laertes Calandra em sessões de tortura no DOI.
O cônsul. Entre os civis se destaca o nome de Claris Halliwell, identificado como cônsul americano. À primeira vista, sua presença é compreensível – o Dops tinha uma delegacia especializada em estrangeiros. Chamam atenção, porém, o envolvimento de um cônsul com serviços que poderiam ser executados por funcionários menos graduados e a frequência das visitas. Em 1971 ele foi pelo menos duas vezes por mês ao Dops.
A assessoria de comunicação do Consulado dos EUA diz não ter registros de antigos funcionários. Por isso, não pode confirmar a presença de Halliwell em São Paulo, o cargo que ocupava ou as idas ao Dops.
As poucas informações disponíveis podem ser encontradas num livro sobre seu pai, Leo Halliwell, que atuou na Amazônia como missionário evangélico na década de 30. Claris teria passado a infância em Belém.
Ainda segundo o livro, ele atuou como representante diplomático no Equador e no Brasil e foi cônsul em São Paulo entre 1971 e 1974 – período em que aparece no Dops. Seus substitutos não eram tão assíduos.
Fiesp. Outro civil que se destaca é Geraldo Resende de Mattos, cujo nome aparece sempre seguido pela sigla Fiesp, que identifica a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Ele está presente em todos os volumes, que cobrem o período de março de 1971 a janeiro de 1979.
Na sua fase mais ativa, entre 1971 e 1976, Mattos realizou mais de 200 visitas. Chegava no fim da tarde, por volta das 18 horas, e saía uma hora depois. Às vezes se estendia mais: certo dia, passou oito horas no local.
Mattos morreu de enfarte em 2002, aos 65 anos. Segundo a Fiesp, ele nunca figurou no seu quadro de funcionários. Um parente próximo, que pediu para não ser identificado, contou que ele trabalhava para o Serviço Social da Indústria (Sesi). Consultado na sexta-feira pela reportagem, o Sesi pediu mais tempo para verificar a informação.
O parente também contou que Mattos era especialista em questões de ordem política e sindical. O mais provável é que colaborasse com o Serviço de Informação, que funcionava no quinto andar do Dops, sob o comando do delegado Romeu Tuma. Cabia àquele serviço produzir relatórios para o governador sobre a situação política e social no Estado – uma atuação diferente da que ocorria no segundo andar, onde ficava Fleury.
Universidades. Embora sejam documentos precários, com erros e muitas lacunas, os livros fornecem indicações sobre o alcance do serviço de informações. Alguns exemplos: entre 1974 e 1975, são frequentes as visitas de um senhor apontado como agente na Petrobrás; há um coronel muito assíduo que se identifica com a Cesp, estatal do setor de energia elétrica; outro crava Unesp, de Universidade Estadual Paulista.
Algumas pessoas apareciam porque eram chamadas. Foi essa a explicação que o ex-empresário de João Gilberto, o advogado Krikor Tcherkezian, deu para o fato de seu nome aparecer várias vezes na lista, seguido da sigla USP. Disse que trabalhava no gabinete do reitor e era chamado até seis vezes por mês para acompanhar estudantes envolvidos em investigações da polícia. “Era só aquela coisa de averiguação”, contou. “Nunca vi nada. A gente queria saber e não tinha acesso, porque não falavam nada.”
O delegado Calandra também foi procurado, mas não quis falar. Ênio Rocha Silveira, filho do capitão Ênio, contou que, ainda criança, acompanhou o pai em algumas visitas ao Dops. “Mas eu nem sabia o que meu pai fazia. Ele foi falar com o delegado Fleury e com o Romeu Tuma”, disse. “Meu pai foi chefe da equipe de investigadores do DOI-Codi e também foi para o confronto.”
Após passar para a reserva com a patente de coronel, Ênio morreu com quatro tiros no peito em 1986. Segundo o inquérito militar, cometeu suicídio. O filho contesta o laudo na Justiça, afirmando que foi assassinato. “Queima de arquivo.”
Os livros da portaria do Dops agora fazem parte do acervo digitalizado do Arquivo do Estado e podem ser consultados pela internet.
Fonte: O Estado de São Paulo